“Vítimas de violência reiterada são atendidas com discriminação”, afirma juiz

03 de agosto, 2017

O juiz Deyvis Marques esclarece pontos em torno da Lei Maria da Penha, que completa 11 anos no dia 7 de agosto.

(Claudia 03/08/2017 – acesse no site de origem)

Lei Maria da Penha (nº 11340/06) completa 11 anos no dia 7 de agosto, próxima segunda-feira. A existência desse instrumento legal representa uma conquista para as brasileiras, porque cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Lei Maria da Penha contribuiu para uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios praticados dentro das residências das vítimas. No entanto, apesar dos avanços, os índices de agressões contra as mulheres ainda são alarmantes. Todos os dias, a redação de CLAUDIA recebe muitas dúvidas sobre a aplicação dessa lei. Convidamos três especialistas para responder às principais questões.

O primeiro deles é Deyvis Marques, juiz do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte e presidente do Fórum Nacional de Violência Doméstica.

Nos próximos dias, apresentaremos nossas questões respondidas pela juíza Adriana Ramos, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e Marina Ganzarolli, advogada e cofundadora da Rede Feminista de Juristas, que atua em São Paulo.

“Apesar de muitas mulheres terem conhecimento da existência da lei, muitas não sabem especificamente o que fazer e a quem recorrer em um caso de violência por desconhecer o funcionamento da rede local de acolhimento e atendimento.”

CLAUDIA – Quais são os principais obstáculos para implementação da Lei Maria da Penha?

Deyvis Marques – Um dos principais fatores que impedem sua implementação é a falta de estrutura dos órgãos destinados ao atendimento das mulheres vítimas de violência, principalmente na rede de atendimento do interior dos estados.

Isso ocorre, por exemplo, com as delegacias do interior, geralmente não especializadas, que, diante do acúmulo de atribuições e da falta de recursos humanos e materiais, acabam tendo dificuldades para a conclusão das investigações.

Outro entrave à efetividade da lei é a baixa interiorização dos serviços especializados em atendimento à mulher vítima de violência doméstica: muitos municípios ainda não têm o devido preparo nem programas eficientes para o enfrentamento da questão.

No mesmo sentido, há uma dificuldade decorrente da formação deficitária das pessoas que deveriam atender as mulheres ofendidas, as quais acabam sendo afugentadas pelo despreparo e pela falta de acolhimento e tratamento adequadoda situação por elas vivenciada.

Ainda hoje é muito comum vermos vítimas de violência reiterada, que retornaram para os agressores, serem atendidas com discriminação por falta de compreensão de agentes públicos de diversos setores, que não entendem as situações de dependência econômica e psicológica a que estão submetidas e que as fazem retomar aquela relação violenta.

O atendimento despreparado ocorre também em alguns casos em que há violência sexual, pois muitos tendem a culpabilizar a própria vítima.

Apesar da ampla visibilidade que se dá à Lei Maria da Penha nos meios de comunicação e de muitas mulheres terem conhecimento dela, muitas não sabem especificamente o que fazer e a quem recorrer em caso de violência por desconhecer o funcionamento da rede local de acolhimento e atendimento.

CLAUDIA – Quando um caso de agressão física à mulher é tratado pela Lei Maria da Penha, e não sob o Código Penal?

Deyvis Marques – Primeiramente, é importante destacar que a Lei Maria da Penha não criou nenhum novo crime; apenas estabeleceu mecanismos e políticas de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, sendo que os tipos criminais configurados nos diversos casos de violência continuam sendo os previstos no Código Penal e na legislação penal.

A Lei Maria da Penha apenas mudou a forma de enfrentamento desses crimes, estabelecendo maior rigor na sua abordagem, aumentando, em alguns casos, a pena e estabelecendo medidas de proteção para a vítima.

Assim, todo caso de agressão física contra a mulher é tratado pela lei penal, mas alguns deles serão tratados pela lei penal e conjuntamente pela Lei Maria da Penha.

Nesse sentido, serão tratados simultaneamente por essas leis quando uma violência for baseada no gênero, ou seja, na concepção da submissão da figura feminina ao agressor e desde que ocorra no âmbito de algum dos seguintes tipos de relação entre a vítima e o agressor: no âmbito doméstico, no âmbito familiar ou no âmbito de uma relação íntima de afeto.

Dessa forma, não é toda agressão contra a mulher que é abrangida pela Lei Maria da Penha, mas apenas aquelas em que haja uma relação doméstica, familiar ou uma relação íntima de afeto, mesmo que ela já tenha terminado.

Por exemplo, se uma mulher é esbofeteada por um estranho na rua, em razão de uma briga de trânsito, essa agressão física será tratada apenas pela lei penal, e não pela Lei Maria da Penha. Mas, se uma mulher for esbofeteada na rua por seu ex-companheiro, que, ao vê-la com um novo namorado, não aceita tal fato, essa agressão física será tratada pela lei penal e pela Lei Maria da Penha porque foi baseada no gênero, ou seja, na concepção de submissão da mulher e porque ocorreu no âmbito de uma relação íntima de afeto que teria ocorrido no passado entre a ofendida e o ofensor.

CLAUDIA – O agressor enquadrado na Lei Maria da Penha pode pagar fiança e livrar-se da detenção?

Deyvis Marques – Esse é um ponto muito criticado por alguns, porque a Lei Maria da Penha não estabeleceu nenhuma proibição geral de fiança para os casos de violência contra a mulher. Assim, em regra será possível o pagamento de fiança, já que não há impedimento legal para que isso ocorra.

Entretanto, deve ser ressaltado que a aplicação da fiança deve seguir as regras estabelecidas no Código de Processo Penal, havendo casos em que não poderá ser aplicada. Por exemplo, se for cabível a prisão preventiva, como nos casos em que é necessária a manutenção da prisão para garantir o cumprimento das medidas protetivas.

E ainda que o agressor seja solto mediante fiança, ele poderá ser submetido às medidas protetivas, como afastamento do lar, proibição de aproximação e contato com a vítima, sendo que, mesmo nessa hipótese, caso haja descumprimento, o juiz poderá determinar seu retorno à prisão provisória.

Quanto a essa questão, existem dois projetos de lei, um de autoria da deputada federal Erika Kokay e um da deputada federal Flávia Morais, ambos com a finalidade de se estabelecer uma vedação geral de concessão de fiança para todos os casos de crimes cometidos com violência contra a mulher (Projetos 6916/2017 e 6997/2017).

CLAUDIA – Gays e lésbicas que sofrem violência por parte do parceiro podem procurar a Delegacia da Mulher? A LMP pode ser aplicada nesses casos? Desde quando?

Deyvis Marques – A Lei Maria da Penha foi instituída como instrumento de proteção à mulher vítima de violência doméstica, independentemente da orientação sexual da mesma, conforme art. 2º e conforme art. 5º., § 2º. da citada lei. Assim, às mulheres homossexuais – portanto, às lésbicas – são garantidos o atendimento nas delegacias, bem como os mecanismos de proteção da Lei Maria da Penha, como as medidas protetivas de urgência.

Aos homens homossexuais (gays), todavia, a referida lei não se aplica, já que é um sistema de proteção exclusivo das mulheres. Contudo, isso não significa que tais homens estejam desassistidos, pois podem procurar outras medidas judiciais, seja no âmbito criminal ou até mesmo no âmbito cível.

Ainda sobre essa questão, existe um projeto de lei, de autoria da deputada Jandira Feghali, com a finalidade de estabelecer a abrangência da Lei Maria da Penha às pessoas transexuais e transgêneros (Projeto 8032/2014).

CLAUDIA – A pornografia de vingança se enquadra como violência psicológica na Lei Maria da Penha?

Deyvis Marques – Sim, já que a divulgação de fotos e/ou vídeos íntimos é apta a causar dano emocional e diminuição da autoestima ou de prejudicar e perturbar o pleno desenvolvimento ou, ainda, degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças e decisões da vítima mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, chantagem, ridicularização, causando-lhe prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Nesses casos, o Juiz poderá determinar, inclusive, a aplicação de medidas protetivas para a vítima, proibindo que o agressor entre em contato com ela e que ele adote determinadas condutas, sob pena de aplicação de multa pecuniária, caso haja descumprimento.

Beatriz Roscoe

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