Políticas públicas pouco detalhadas, ampliação do acesso a armas de fogo e declarações de cunho machista marcaram a atuação do Executivo na área.
(HuffPost, 30/12/2019 – acesse no site de origem)
Políticas públicas pouco detalhadas de combate à violência doméstica, ampliação do acesso a armas de fogo, ações de valorização da família ao invés da mulher e declarações de cunho machista marcaram a atuação do Executivo em temas ligados a mulheres no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.
“A gente percebeu muito discurso e pouca prática. Nada muito tangível. Dizer ‘vamos acabar com a violência contra mulher’ é muito vazio. Tem que apontar de que forma isso deveria acontecer”, afirmou Bianchini ao HuffPost Brasil.
Na avaliação da especialista, políticas públicas que não dependem de orçamento, como discussão de questões de gênero nas escolas ― que são previstas na Lei Maria da Penha ―, poderiam ter sido implementadas. Ela também considerou que campanhas de mídia tiveram pouco impacto.
Durante muito tempo as pesquisas perguntavam: ‘mulher que apanha deve continuar com o relacionamento para o bem da família?’ E tinha um percentual muito grande de pessoas que entendiam positivamente.
Alice Bianchini, Vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e integrante do Consórcio Feminista Lei Maria da Penha
Em agosto, a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) anunciou a expansão do programa “Maria da Penha Vai à Escola”, iniciado em 2014 e que divulga a legislação em escolas públicas. O HuffPost Brasil pediu ao ministério informações sobre o andamento da iniciativa e os possíveis resultados, mas, até a publicação dessa reportagem, não obteve resposta.
No mesmo mês, na data em que a Lei Maria da Penha completou 13 anos, Damares e o ministro da Justiça, Sergio Moro, assinaram um pacto para implementação de políticas contra a violência contra a mulher. Apesar de questionadas, ambas as pastas não detalharam quais ações estão incluídas na iniciativa. Representantes dos dois ministérios também atuam em um grupo conjunto de trabalho de temas ligados às mulheres.
Na ocasião, Moro afirmou que foi duramente criticado por dizer que os homens costumam recorrer à violência contra as mulheres por se sentirem intimidados e não aceitarem que elas, em geral, sejam melhores do que eles.
“Muitas vezes se diz que são necessárias políticas de proteção à mulher porque, dizem, elas são vulneráveis”, afirmou Moro. “Mas isso não é verdade, porque elas são mais fortes e melhores do que os homens. Por que são melhores do que nós? Talvez porque nós, homens, somos intimidados e, por conta dessa intimidação, nós, homens, recorremos à violência para firmar uma pretensa superioridade que não existe. Mulheres são melhores, mas precisam de proteção maior, até por essa condição”, completou.
Questionado pela reportagem, o Ministério da Justiça informou que “trabalha para viabilizar o aprimoramento e atualização da base de dados oficiais de segurança pública” e está “comprometido com o enfrentamento e o combate à violência contra a mulher por meio de estudos e análises”.
Ainda em nota, a pasta disse que os estudos “estão sendo conduzidos com o objetivo da construção de protocolos e diretrizes para a padronização e qualificação de procedimentos de atendimento às vítimas de violência doméstica e familiar, de investigação e de perícia do crime de feminicídio”.
O ministério não informou ao HuffPost Brasil, contudo, quando essas ações serão aplicadas.
Para 2020, o ministério promete fomentar atividades em que os agressores de mulheres que cumpram pena alternativa sejam encaminhados a grupos de reflexão nas centrais de alternativas penais.
Também está em fase de elaboração a aquisição de livros que tratem da temática “para auxiliar os processos nas unidades prisionais”, além de orientação aos estados para que mulheres presas vítimas de violência tenham “atendimentos psicológico e de assistência social diferenciados”.
Em outubro, o Ministério da Justiça publicou uma portaria que propõe aos estados a elaboração de planos de ação que incluam atividades destinadas ao enfrentamento da violência contra a mulher.
Projeto “Salve Uma Mulher”
Ainda no mesmo mês, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos lançou o projeto “Salve Uma Mulher”, para capacitar servidores públicos a orientar mulheres em situação de violência doméstica.
Na primeira etapa, a previsão era de que o treinamento seja destinado a 340 mil agentes do Ministério da Saúde, 106 mil funcionários dos Correios, 30 mil conselheiros tutelares e 1.722 profissionais da Defensoria Pública da União. A intenção era também incluir profissionais de beleza, de academias esportivas e líderes religiosos, de acordo com a pasta.
Um dos projetos que se tornou realidade na gestão foi a inauguração da Casa da Mulher Brasileira em São Paulo. O projeto foi instituído em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff. Cada unidade da Federação deveria ter uma unidade até o fim de 2018, mas, até agora, só 7 foram contempladas até o momento: São Paulo, Brasília, Ceará, Paraná, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Roraima.
Cada casa reúne serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência, como Delegacia de Defesa da Mulher, Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça e assistência social.
De acordo com a ministra Damares, houve uma reformulação do projeto. Ao invés de unidades grandes como a de São Paulo, que tem pouco mais de 3.600 metros quadrados, o investimento será em modelos menores que cheguem a lugares fora de capitais. Em agosto, a pasta também assinou um acordo com o Banco do Brasil para a recuperação da unidade de Brasília.
Em novembro, por ocasião do Dia Internacional do Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, estipulado pela ONU, a ministra anunciou novas ações. Entre elas, está transformar dois navios na Amazônia em uma espécie de “Casa da Mulher Brasileira” itinerante e fazer com que todas as delegacias do País tenham atendimentos especializados à mulher por meio de capacitação de delegados e de suas equipes.
A capacitação dos agentes de segurança que trabalham em delegacias começará em janeiro de 2020, sem prazo para término, disse a ministra. O orçamento, que não teve seus valores especificados, virá do programa “Salve uma Mulher”.
Uma das ações classificadas como benéfica por especialistas em violência doméstica foi a recomendação de veto, feita pelo ministério ao presidente Jair Bolsonaro, sobre o projeto de lei que obriga profissionais da saúde a notificar indícios e casos explícitos de violência contra a mulher à polícia em, no máximo, 24 horas.
Ao tornar a notificação de forma obrigatória, o projeto fere a relação de sigilo entre médico e paciente, a autonomia da mulher, além de ter efeito contrário na subnotificação. Antes não havia o prazo legal, nem a obrigação de notificar indícios.
O presidente seguiu a recomendação, mas o veto foi derrubado pelo Congresso, em novembro.
“País da família”
Uma mudança nas políticas públicas vista como sensível por especialistas é o foco em ações ligadas à família. Em setembro, em evento chamado “Cúpula da Demografia”, Damares anunciou que o Brasil “voltou a ser um país da família” e convocou líderes internacionais a formar uma aliança na ONU (Organização das Nações Unidas) por esses valores. Integrantes de governos do Leste Europeu indicaram que iriam coordenar essa agenda.
Na ocasião, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, afirmou que “toda criança tem o direito de ter um pai e uma mãe” e chegou a defender uma mudança na Constituição húngara para “proteger as famílias” e impedir que cortes judiciais tomem decisões “antifamília”.
Para Alice Bianchini, esse tipo de discurso pode levar a entraves no combate à violência contra mulher. “Claro que a família é importante, mas se a gente colocar a importância maior na família do que em relação aos integrantes da família, vamos ter problemas”, diz. “Durante muito tempo, até 2003, que é a última pesquisa que a gente tem, quando se perguntava ′mulher que apanha deve continuar com o relacionamento para o bem da família?’, tinha um percentual muito grande de pessoas que entendiam positivamente.”
A jurista destaca decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em agosto de 2019, em que o agressor foi absolvido, apesar de a agressão ter sido comprovada, porque a mulher voltou para o relacionamento. “Nem se sabe se, quando foi dada a sentença, ela voltou mesmo, se voltou por coação ou por medo. Independentemente de qualquer situação dessa, o direito penal não tem essa figura de que por que ela voltou ou perdoou o crime deixou de existir. Vejo como perigoso isso”, afirma Bianchini.
Flexibilização do porte de armas e alterações na Lei Maria da Penha
Em 2019, cinco projetos que alteram a Lei Maria da Penha foram aprovados pelo Congresso Nacional. Na avaliação de especialistas, alterações constantes que são entendidas como positivas podem ser contraditórias e enfraquecer a lei, que é considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) a terceira melhor legislação do mundo no combate à violência doméstica.
Para Silvia Chakian, promotora do Ministério Público de São Paulo, membro do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica, é preciso ter cautela tanto ao apresentar projetos que visam a alterar a Lei Maria da Penha, quanto ao analisá-los.
“Essas iniciativas podem, em um primeiro momento, trazer modificações que aparentemente são positivas aos olhos leigos, mas que, na prática, não têm efetividade ou que podem até trazer prejuízos”, aponta.
Mesmo sendo crítica às iniciativas recentes, Chakian reconhece que “há uma boa intenção dos parlamentares” ao propor esses projetos e que alguns, sim, auxiliam na aplicação da lei, como a que tenta facilitar o divórcio da vítima de violência, por exemplo.
“Muito mais do que criar novas leis, a gente precisa investir nas políticas públicas que já estão previstas na Lei Maria da Penha há 13 anos e que não saíram do papel ainda hoje”, aponta Chakian. “Essas iniciativas precisam ser muito debatidas com os profissionais, especialistas e a própria sociedade civil. Ouvir as mulheres, as destinatárias das leis, também é importante.”
Muito mais do que criar novas leis, a gente precisa investir nas políticas públicas que já estão previstas na Lei Maria da Penha há 13 anos e que não saíram do papel ainda hoje.
Silvia Chakian, promotora do Ministério Público de São Paulo (MPSP)
Outro ponto crítico nas políticas públicas que afetam as mulheres é a liberação de armas de fogo. Foram 8 decretos presidenciais nesse sentido em 2019. O Ministério da Justiça nega que essas ações possam aumentar o número de feminicídios.
Em outubro, Thaylize Rodrigues Orsi, da Coordenação de Legislação em Segurança Pública da Secretaria Nacional de Segurança Pública da pasta, afirmou, em audiência pública na Comissão da Mulher na Câmara, que não há evidências de que a liberação de armas aumente esse tipo de violência. O ministro responsável pela pasta tem adotado a mesma posição.
Segundo o Atlas da Violência de 2019, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 4.963 brasileiras foram mortas em 2017 (dados mais recentes), considerado o maior registro em dez anos. A taxa de assassinato de mulheres negras cresceu quase 30%, enquanto a de mulheres não negras subiu 4,5%.
Entre 2012 e 2017, aumentou 28,7% o número de assassinatos de mulheres na própria residência por arma de fogo.
“Se a gente tiver maior disponibilidade de armas, a lógica é que vai aumentar mais ainda esse tipo de violência. E a arma tem uma letalidade muito grande. Dificilmente a pessoa sobrevive a um disparo por arma de fogo”, diz Bianchini.
“E temos um dado psicológico de que é mais fácil pegar um arma e disparar contra pessoa do que matar a facada, pedrada, paulada. Psicologicamente é muito mais fácil apertar um gatilho.”
O Mapa da Violência 2016, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), porém, mostra que o Estatuto do Desarmamento foi responsável por poupar 160.036 vidas desde 2003. Entre 1993 e 2003, os homicídios com arma de fogo cresceram 7,8% ao ano, até atingir 36.115 mortes. Seguindo esta progressão, em 2012, o número deveria ser de 71.118 vítimas fatais de disparos, mas foram registradas 40.077 mortes.
Já as estimativas de casos de estupro no Brasil variam entre 300 mil e 500 mil casos por ano, devido à subnotificação. Em 2018, segundo dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o País atingiu o recorde de registros. Foram 66 mil vítimas, o equivalente a 180 por dia ― maior número deste tipo de crime desde que o relatório começou a ser feito, em 2007.
Por Andréa Martinelli e Marcella Fernandes