(Folha de S. Paulo, 20/11/2015) Se no feminismo todos são iguais, algumas são mais iguais que outras. Como demonstrou o recente episódio racista envolvendo a atriz global Taís Araújo, a fama não exime as mulheres negras do preconceito e da invalidação.
“Uma mulher negra bem sucedida ainda incomoda muito. É como se ela não devesse estar ali por ser negra, a menos que tenha transado com alguém, ou coisa do tipo”, comenta a rapper Karol Conka, 29. “É difícil que reconheçam seu trabalho. Ao invés disso, preferem arranjar desculpas. Já me acusaram de ser puta e de fazer macumba, por exemplo.”
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Mulheres negras sofrem as manifestações mais perversas de racismo e sexismo no Brasil, por Silvia Chakian (Brasil Post, 20/11/2015)
Em Curitiba, onde nasceu e ainda reside com o filho, Jorge, 10, ela tem seu lugar na sociedade colocado em constante dúvida. “Esses dias eu entrei numa farmácia e me perguntaram se eu era refugiada do Senegal comprando algo para a patroa. É esquisito ser negra no sul do Brasil. A gente brinca que é como ser ET.”
Desde a professora do primário que desmanchava suas tranças até a rejeição dos colegas de ensino fundamental, episódios de racismo sempre estiveram presentes na trajetória da cantora de “Gandaia”.
“Eu não conseguia dançar quadrilha nas festas juninas quando criança, porque os meninos se recusavam a pegar na minha mão. Falar isso dá vontade de chorar. Por sorte, minha família me deu uma boa base e cresci com autoestima”, conta.
A história se repetiu também na vida da artista plástica Rosana Paulino, 48, doutoranda em poéticas visuais pela Escola de Comunicação e Artes da USP.
“Quando você é negro no Brasil, é só entrar em uma loja que começam a te seguir. Você está na faculdade e perguntam se trabalha lá. Faz a conexão em um voo internacional e os seguranças te param para perguntar aonde vai, mesmo que não faça isso com os demais passageiros”, diz.
Nascida na periferia de São Paulo, ela seguiu os conselhos da mãe empregada doméstica, que a alertou sobre a necessidade de estudar para “não lavar banheiro”. Seu esforço a levou à USP, onde cursou artes visuais.
“Minha família era muito pobre, então minha mãe fazia barro e nos colocava para brincar com ele, fazendo esculturas e outros trabalhos manuais”, explica Rosana. “Se quando criança a gente demora a perceber a questão da negritude, entrei na faculdade, vi meu grupo racial tão pouco representado e já me perguntei onde estavam essas pessoas. Essa inquietação sempre me acompanha.”
A atriz Lucy Ramos, 33, que viveu a bem sucedida psicóloga negra Patrícia na novela “I Love Paraisópolis” (Globo), diz só ter entendido a questão do racismo na vida adulta. Para ela, a personagem instigou um debate social.
“Ela trouxe bastante esse questionamento do racismo. Minhas outras personagens eram pobres ou escravas; a Patrícia, não. Ao longo da novela, vi em primeira mão a necessidade das mulheres negras verem outras em posições sociais melhores —elas me abordavam na rua agradecendo, me chamando de referência”, conta. REFERÊNCIAS ESTÉTICAS A representação das mulheres negras na mídia (ou falta dela), que geralmente são submetidas a padrões de beleza está entre os fatores de maior incômodo. Enquanto Rosana se ressentiu por não haver uma princesa com seu tom de pele, Karol gastou dinheiro que não tinha para alisar o cabelo crespo. Para a rapper, isso se relaciona ao padrão de beleza racista que é ensinado às crianças. “Minha família não tinha uma condição financeira tranquila, mas mesmo assim eu cresci gastando essa grana no salão sem precisar. Temos que afirmar nosso cabelo como uma coisa boa, como uma coroa.” “A questão do cabelo é muito forte. Todas as referências negras que temos, inclusive de fora do país, têm o cabelo liso”, concorda Lucy, que hoje gasta cerca de 40 minutos diários com os cachos naturais. “Por que falam tanto? É meu cabelo, faço dele o que eu quero. Por que ele é marginalizado? O bonito é o volume. Eu assumi os cachos mesmo e fazer isso é quase um posicionamento político.”
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O levantar de bandeiras é parte essencial do trabalho de Rosana, que usa materiais tradicionalmente ligados ao universo feminino (tecidos, bordados, linhas) para ampliar a discussão sobre o papel social da mulher no Brasil. Da forma com que encara sua arte, esta só é verdadeira quando aborda algo que a incomoda em seu âmago —ela se diz incapaz de produzir uma obra movida apenas por valores estéticos.
“A mulher na arte é muito mais objeto que sujeito de sua história e discutir suas questões é algo relativamente recente, ainda mais raro no caso das negras. O problema é que você não pode ser representado plenamente pelo outro. Representar a si mesmo apresentando as questões presentes para o seu grupo é mandatório para pensar o país”, opina.
Rosana critica a falta de inclusão no meio das artes plásticas, embora não se diga prejudicada pela discriminação. Segundo ela, ter frequentado a USP lhe abriu portas importantes, mas que não devem ser tomadas como padrão. “Meu caso foi excepcional, sui generis. Não é a carreira da maioria das artistas negras no Brasil.”
Karol Conka não teve a mesma facilidade. Entre descobrir o rap com o disco “Fugees”, da americana Lauryn Hill (“me chamou a atenção por ter uma negra linda na capa, o que não é comum”), e se consolidar no meio, cansou de ter sua capacidade subestimada.
“Senti um despreparo do mercado artístico para com a mulher. Me tratavam mal por ser moleca e tenho de ser bruta para conquistar respeito. Me entristecia ter de chegar mais forte para o cara entender o recado. Hoje o rap continua a dizer que a mulher não é capaz, ‘menos a Karol’. Me veem como exceção. Não quero ser uma exceção”, protesta.
A rapper diz não querer ser um caso isolado de sucesso, mas uma referência para a geração mais nova de que é possível ser uma mulher negra bem-sucedida.
Rosana também é otimista. “Vivemos um momento único no Brasil. Cansei de ser a única em exposições, debates e cursos, e hoje não é mais assim. Você vai a um simpósios e encontra uma série de moças negras estudantes que estão na batalha. Na minha época, apenas uma ou duas pessoas conheciam isso e matava-se dez leões por dia. O atraso do Brasil nessa área é histórico, mas acredito que esteja mudando”
Alguns processos, porém, são mais lentos que outros, e as artistas ainda sofrem com manifestações de preconceito na internet.
“Postei uma foto na minha página no Instagram com um macaquinho de pelúcia pelo qual fiquei apaixonada. Um dos comentários foi ‘você é igual a ele’, me chamando de macaca. Foi o único desse nível e eu logo deletei, achei uma pena. Denunciei apenas no Instagram. Recebi 99 comentários positivos, apenas um negativo, mas foi este que ficou”, diz Lucy.
Já o pavio de Karol é mais curto: ela indiciou um professor de 55 anos por comentários racistas a seu respeito na internet. “Eu não deixo barato.”
Maria Clara Moreira
Acesse o PDF: À margem do feminismo, artistas negras se queixam de discriminação (Folha de S. Paulo, 20/11/2015)