(O Globo, 02/01/2015) Tudo o que quero para o Ano Novo é o banimento de qualquer coisa “pós-racial” do discurso social e político. Desde sua aparição, em 2008, para anunciar a ascensão de Barack Obama, o conceito estava equivocado. Não passa de uma lembrança distante o momento em que Obama ganhou a duramente disputada primária da Carolina do Sul e a audiência entoou “a raça não importa”. Notícias, pesquisas e estudos que surgiram na segunda metade de 2014 deixaram claro o contrário.
Os episódios fatais entre a polícia e afro-americanos desarmados, particularmente Michael Brown em Ferguson, Missouri, e Eric Garner, em Nova York, provocaram um debate nacional sobre raça e aplicação da lei. O fracasso no indiciamento dos policiais nesses dois casos levou a um diálogo sobre raça e igualdade na administração da justiça. Mas deixemos essas duas explosões, que meu colega do “Washington Post” Eugene Robinson chama de nosso “padrão espasmódico” no que se refere a raça.
Evidências de que a raça é importante estão à nossa volta, literalmente. O pessoal da Vox nos lembrou, recentemente, que uma instituição chamada Southern Poverty Law Center listou as seções ativas da Ku Klux Klan nos EUA. A NewsOne transformou a informação num mapa interativo. O grupo racista e antissemita que se fantasia com longas roupas brancas, cruzes em fogo e tem um histórico de atos de violência está ativo em 41 dos 50 estados americanos.
Sem trocadilho, a raça colore a maneira pela qual observamos algumas questões. Uma pesquisa Post-ABC News mostra quão forte é a divisão quando se trata da aplicação da lei:
“Apenas um em dez afro-americanos diz que negros e outras minorias recebem tratamento igual aos brancos no sistema de justiça criminal. Somente dois em dez dizem confiar em que a polícia trata brancos e negros com igualdade, tenham ou não cometido um crime. Por outro lado, cerca de metade dos brancos americanos diz que as raças são tratadas com igualdade no sistema judicial, e seis em dez confiam em que a polícia trate brancos e negros da mesma forma.”
A divisão não se dá apenas ao longo das linhas raciais. A pesquisa também destaca sua natureza partidária. Se você é um republicano branco, é mais provável achar que as diferentes raças são tratadas com igualdade pela polícia. Mas, se for um democrata branco, será mais inclinado a acreditar que há diferenças no tratamento.
Uma coluna recente de Esther Cepeda aborda um estudo a respeito do impacto da linguagem e a percepção em relação aos afro-americanos. Impressionante, ele abre nossos olhos.
O título do trabalho diz tudo: “A rose by any other name? The consequences of subtyping ‘African-Americans’ from ‘Blacks’” (algo como “Dar um nome diferente à rosa? As consequências de diferenciar ‘afro-americanos’ e ‘negros’”).
As pesquisadoras Erika Hall, Katherine Phillips e Sarah Townsend fizeram quatro experiências para ver se os brancos fazem distinção entre “negros” e “afro-americanos”. Por favor, leiam o estudo. É fascinante. Mas tudo o que você precisa saber está no sumário:
“Descobrimos que o rótulo racial ‘negro’ evoca uma representação mental de uma pessoa de menor status socioeconômico que o rótulo ‘afro-americano’, e que os brancos reagem mais negativamente em relação a ‘negro’. No estudo 1, mostramos que o estereótipo para ‘negro’ é mais baixo em status, competência e cordialidade. No estudo 2, brancos identificam ‘negro’ com status mais baixo em relação a ‘afro-americano’. No estudo 3, demonstramos que o uso do rótulo ‘negro’ versus ‘afro-americano’ numa notícia sobre um crime num jornal americano é associado a um tom emocional negativo no artigo. Finalmente, no estudo 4, mostramos que os brancos consideram um suspeito de cometer um crime de forma mais negativa quando ele é identificado como ‘negro’. As conclusões estabelecem a maneira como rótulos raciais podem ter consequências materiais para um grupo.”
O estudo deverá dissipar qualquer noção de que a nossa jamais será uma sociedade “pós-racial”. Antes que isso aconteça, nós teríamos que, primeiro, lidar com nossa atual sociedade racista. Mas teríamos de falar com cada um, face a face, num exercício intensamente pessoal e desconfortável.
O matiz multirracial das manifestações nos EUA deu-me a esperança de que essas conversas estejam ocorrendo um pouco mais agora. Pequenos passos na estrada para a cura racial. Ainda assim, essas conversas têm de se tornar nacionais porque requerem um elemento chave que está em falta: confiança. Até que possamos ter uma conversa baseada na confiança, não daremos o passo gigantesco para uma nação “pós-racial”, em que raça não tenha importância.
Jonathan Capehart integra a equipe de editorialistas do “Washington Post”
Acesse no site de origem: A falácia de uma sociedade ‘pós-racial’, por Jonathan Capehart (O Globo, 02/01/2015)