(Carta Capital, 30/03/2016) A artista interdisciplinar portuguesa aborda questões como gênero, memória e racismo
A convite do Instituto Goethe, Grada Kilomba fez intervenções em São Paulo dentro do evento “Massa Revoltante”. A escritora, performer e professora da Universidade Humboldt de Berlim realizou a palestra performance “Descolonizando o conhecimento”
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Com origens nas ilhas São Tomé e Príncipe e Angola, a artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba trabalha com os temas de gênero, raça, trauma e memória. Autora dePlantations Memories – Episodes of everyday racism, acaba de lançar sua mais nova obra chamada Performing Knowledge.
Particularmente, encontrá-la foi um momento especial porque Grada está nas referências bibliográficas da minha pesquisa de mestrado, e foi emocionante poder conhecê-la além de sua obra. Grada parece ocupar um lugar de sublimação, sua fala é otimista, acolhedora e seu trabalho, como ela mesma diz “dialoga com as vozes do futuro”. Leia trechos da entrevista a seguir:
CC: Como é possível descolonizar nosso pensamento numa sociedade que ainda não nos vê como sujeito?
GK: Parte do processo de descolonização é se fazer essas questões. É perguntar, às vezes é não ter a resposta, mas fazer novas perguntas. Quando eu trabalho, eu sou a favor de criar novas questões e não necessariamente de encontrar as respostas. Às vezes nós estamos à espera de fazer perguntas muito divinas que ninguém pode responder, fazemos perguntas que são muito absolutas a espera de uma receita, de um resposta absoluta. E isso é uma contradição do processo. Eu acho que o próprio processo de descolonização é fazer novas questões que nos ajudam a desmantelar o colonialismo.
Faz parte desse processo de descolonização aprender a fazer perguntas menores, que fragmentam. Eu acho isso muito importante. A população branca perguntou durante muito tempo se era racista. É de novo uma pergunta muito absoluta que tem uma resposta muito absoluta.
CC: Qual o papel do sujeito negro nisso?
GK: Somos pessoas diferentes, sujeitos diferentes. Há dias que me sinto forte, há dias em que sinto fraca, há dias em que não quero ver ninguém, há dias em que eu rio muito. Todo dia é diferente. Há dias em que eu faço piada, há dias em que eu choro. E isso faz parte desse processo de humanização porque o racismo não nos deixa ser humano.
O racismo nos coloca fora da condição humana e isso é muito violento. E muitas vezes nós achamos que alcançar essa humanidade se dá através da idealização. Se o racismo diz que eu não sei, eu vou dizer que sei ainda mais. E pra mim é muito importante desmistificar isso. Eu quero ser eu, não quero ser idealizada e nem inferiorizada. E eu, assim como todas as pessoas, quero dizer que há dias em que sei, e dias em que não sei. Às vezes eu choro e às vezes eu rio, às vezes eu quero e às vezes eu não quero. Quero ter essa liberdade humana de ser eu.
CC: Aqui no Brasil, durante muito tempo, se negou a existência do racismo, criou-se o mito da democracia racial, e por conta dessas construções muitas pessoas negras no não se vêem como negras. Como lidar com o racismo nessa situação?
GK: Eu nasci em Lisboa e só depois de um tempo fui morar em Berlim e em Lisboa também há toda essa hierarquização de termos como mulato, mestiço. E as pessoas usam o termo sem saber o que o termo quer dizer. São termos ligados a animais híbridos, de colocar referências do corpo negro como animal. São depreciativos. E é necessário fazer a historicidade desses termos porque muitas vezes as pessoas acham que são palavras positivas, é necessário descodificar.
Aqui temos um movimento muito assimilado, nós somos muito simpáticos, e o movimento negro que eu vivenciei na Alemanha foi muito bom pra mim porque as coisas são muito claras. Nós tivemos uma influência muito grande da maravilhosa escritora e feminista Audre Lorde, que viveu muitos anos em Berlim, o que ajudou muito uma geração anterior à minha a se auto definir, a deixar uma série de palavras para trás.
E ela vinda dos EUA, como mulher feminista, lésbica, falou muito sobre a importância de uma identidade política. Por isso que para esse evento do Goethe nós fizemos vários cartazes com a afirmação “branco não é uma cor”, porque branco não é uma cor, é uma afirmação política, assim como negro ou Black.
Representa uma história de privilégios, escravatura, colonialismo, uma realidade cotidiana. A mudança começa pela autodefinição e a importância disso. È necessário desmistificar essa hierarquia.
CC: O indivíduo branco não se racializa, geralmente se coloca como universal. Como fazer esse indivíduo perceber que ser branco é uma afirmação política?
GK: As pessoas brancas não se vêem como brancas, se vêem como pessoas. E é exatamente essa equação, “sou branca e por isso sou uma pessoa” e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo. E essa centralidade do homem branco não é marcada. E o que esses movimentos como o Critical Whitness e o que eu faço no meu trabalho, é justamente começar a marcar.
E o que quer dizer marcar? Quer dizer também falar sobre diferenças. Por exemplo, como pessoas negras, muitas vezes, somos referidos como diferentes. E eu coloco a questão: diferente de quem? Quem é diferente? Tu és diferente de mim ou eu sou diferente de ti? Pra dizer a verdade nós somos reciprocamente diferentes. Então a diferença vem de onde? Eu só me torno diferente se a pessoa branca se vê como ponto de referência, como a norma da qual eu difiro. Quando eu me coloco como a norma da qual os outros diferem de mim, aí os outros se tornam diferentes de mim. Então é preciso a desconstrução do que é diferença.
Outro mito que precisamos desconstruir é de que muitas vezes nos dizem que nós fomos discriminados, insultados, violentados porque nós somos diferentes. Esse é um mito que precisa acabar. Eu não sou discriminada porque eu sou diferente, eu me torno diferente através da discriminação. É no momento da discriminação que eu sou apontada como diferente. Desconstruir o racismo e descolonizar o conhecimento. Às vezes podem soar apenas como palavras, mas possuem uma construção teórica imensa.
CC: Por conta do aumento de pessoas negras nas universidades nos últimos anos, da própria internet, que com seus limites, permite que pessoas negras disputem narrativas, há uma reação forte por parte de algumas pessoas brancas de inverter o discurso e dizer que existe “racismo reverso”. Dizem que as pessoas negras são agressivas e não permitem o diálogo. Você vê isso como uma forma de querer barrar as narrativas das pessoas negras?
GK: Mais uma vez tem a ver com a desmistificação. Racismo tem a ver com poder, com privilégios. A população negra não tem poder historicamente. Racismo é uma problemática branca, portanto temos que começar pela desmistificação. Dentro de comunidades marginalizadas pode haver preconceito, isso é uma coisa, mas poder é a definição de racismo.
Por sermos vistos como diferentes e essa diferença ser considerada problemática, ficamos de fora das estruturas de poder, que é o racismo estrutural, institucional, acadêmico, do dia a dia, etc. Quando nós sabemos o que é o racismo, sabemos que independentemente dos conflitos entre as diferentes comunidades, não há racismo inverso. Quando um sistema está habituado a definir tudo, bloquear os espaços e as narrativas e nós, a partir de um processo de descolonização, começamos a adentrar esses espaços, começamos a narrar e trazer conhecimentos que nunca estiveram presentes nesses lugares, claro que isso é vivenciado como algo ameaçador.
Porque é necessário desistir de certos privilégios. Isso faz parte do processo que as pessoas precisam agüentar e eu não vejo isso como violência, eu vejo o racismo como uma grande violência.
É preciso não dar importância a essas vozes, precisamos focar nas nossas competências, no modo como estamos transformando as agendas e o discurso. O que me interessa são as pessoas que dialogam comigo, as outras vozes não me interessam. Como mulheres negras, feministas que descolonizam o pensamento, precisamos aprender a focar na energia certa.
Djamila Ribeiro
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