(Época, 28/10/2015) Os eventos dos últimos dias deixaram claro que o debate sobre gênero chegou para ficar – e que o espaço público para o machismo e a misoginia vai se reduzir. Ainda bem
Meu conselho a machistas e misóginos é que mudem de ideia ou mudem de país. Os eventos da semana passada sugerem que a parte instruída do Brasil – que cresce com o avanço da educação – está preparada para proteger os direitos das mulheres e ocupar o espaço de debate em defesa dos seus pontos de vista. Quem acredita que as discussões de gênero são modinha ou conversa de esquerdista não percebeu o tamanho da mudança. Ficará falando sozinho em breve, ou poderá tentar conversar com os pedófilos nas redes sociais. Eles também acham a patrulha feminista intolerável e reclamam que as pessoas perderam o senso de humor e a alegria de viver.
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Pareço eu mesmo mal-humorado? Desculpem, é que li esta manhã, no jornal que eu assino, que o ótimo tema da redação do Enem da semana passada – a persistência da violência contra a mulher – faz parte de uma tal “agenda esquerdista”. Como pode? Num país em que se matam cinco mil e quinhentas mulheres por ano, uma a cada meia hora, violência de gênero é parte obrigatória da agenda nacional. A inclusão desse assunto na prova do Enem deveria ser aplaudida irrestritamente, como o foi pelas mulheres e pelos homens que gostam das mulheres. Chamar isso de “agenda esquerdista” é delírio. Gente de direita e de centro quer que homens violentos espanquem ou matem suas filhas? Acho que não.
Apesar desses tropeços, estou certo de que nos próximos anos o machismo e a misoginia serão varridos para fora do convívio social, da mesma forma como aconteceu com o racismo. A prova do Enem foi apenas um sinal. No passado recente, se podiam dizer coisas ofensivas sobre negros e judeus com a maior naturalidade. Isso acabou. Já não se admite tal conversa. Quem insiste em agir de forma racista se isola à margem da sociedade, num espaço reservado aos malucos, criminosos e ressentidos. O mesmo futuro espera os detratores das mulheres.
O caso Valentina, do MasterChef Júnior, ilustra essa mudança de maneira visceral. Os pedófilos que, na semana passada, publicaram nas redes sociais comentários eróticos sobre a menina de 12 anos, não chamariam atenção no Brasil do passado. Éramos o país do vale tudo sexual. Se a coisa ficasse feia, bastava fingir que era piada. Havia uma grossa camada de machismo protegendo os infratores. Desta vez, não. Ergueu-se contra a pedofilia um tsunami de indignação que não parou de crescer. Só a polícia e o ministério público parecem não ter notado. Sua imobilidade contrasta com a ebulição da opinião pública. Cedo ou tarde, porém, os agentes da lei terão de se afinar com os sentimentos coletivos, ou serão desmoralizados.
Na discussão sobre Valentina, os brasileiros tomaram contato com outra novidade, a expressão cultura do estupro. Ela descreve o ambiente moral em que o assédio sexual tem lugar. A expressão foi criada nos Estados Unidos em meados dos anos 1970, em meio ao debate sobre a persistência dos casos de estupro e a tolerância que tornava essa situação possível. Ali nasceu a percepção de que o estupro era apenas a manifestação mais extrema de uma cultura que tratava as mulheres como objeto e e frequentemente com ódio. Percebeu-se que sexismo e misoginia são o arroz-feijão do estuprador.
Os americanos dizem que a cultura do estupro é exacerbada por três fatores: a inapetência da polícia em investigar os casos, o hábito social de culpar a vítima pelo crime e o medo das mulheres violadas de denunciar e serem estigmatizadas. Todos esses elementos estão presentes na vida brasileira, o que talvez ajude a explicar porque são relatados no país cinco estupros por hora, ou 47 mil por ano. As autoridades estimam que apenas 10% dos casos são denunciados e viram estatísticas. Imaginem como é dramática a situação na parte submersa do iceberg. As brasileiras convivem com o medo.
Algo dessa realidade veio à tona espetacularmente na semana passada, por iniciativa de um grupo voltado ao debate das questões femininas, o Think Olga. No Twitter, logo depois do caso Valentina, o grupo lançou a rashtag #primeiroassédio, convidando as pessoas a contarem suas experiências. O resultado foi uma avalanche de denúncias que rachou a imagem brasileira de harmonia sexual. Apesar do espaço exíguo do Twitter, as moças relataram violências espantosas, que começam na mais tenra infância e avançam adolescência afora:
“Aos 13 anos meu primo me trancou no quarto, começou a me beijar e passava a mão nos meus seios, eu me senti uma boneca de plástico”.
“Vi meu padrasto abusando da minha prima eu tinha uns 8 ou 9 anos e ela uns 12. Ela estava dormindo e ele por cima dela sem calças”.
“Eu tinha uns 6 anos quando um amigo dos meus pais me colocou no colo dele e começou a acariciar as minhas partes íntimas”.
As mulheres são violadas, atacadas, tocadas ou abordadas sexualmente da forma mais vil – dentro de casa e nas ruas, por estranhos e por parentes. É assustador. A família, que deveria proteger, muitas vezes atua para criticar a vítima e reforçar o direito do agressor. A sociedade, moralmente destrambelhada, parece achar tudo natural. Quem mandou andar de shorts, não é? Isso é cultura de estupro.
O antídoto contra esse tipo de atitude é a educação escolar voltada para as questões de gênero. Meninos e meninas, crianças e adolescentes, precisam ser ensinados a conviver entre si com respeito e compreensão. É nessa fase precoce da vida que se que se combatem racismo e machismo. É nesse momento da existência que se destrói a base emocional da misoginia.
Simone de Beauvoir saberia do que estou falando. A escritora francesa de olhos translúcidos e expressão distante também aportou no Brasil na semana passada, mencionada em uma pergunta do Enem sobre a questão de gênero. Simone (1908-1986) publicou romances e ensaios que mudaram a percepção sobre o mundo feminino. É uma intelectual essencial do século XX. A frase dela na prova do Enem – que a condição feminina é socialmente construída, e não apenas a manifestação de uma fatalidade biológica – é de um óbvio atroz, além de ser historicamente fundamental. Mesmo assim, causou desconforto e provocou desaforos antifeministas nas redes sociais. O século XIX agoniza ruidosamente no Brasil do século XXI.
Quando a sociedade discute abertamente casos como o de Valentina, como o Brasil fez na semana passada, ou quando para para falar da prova do Enem, as pessoas se educam. A polêmica suprime a ignorância e a apatia, que são o oxigênio do que há de pior em qualquer país. Os machistas e misóginos continuarão existindo, mas, num país engajado, que estuda e debate as questões femininas, serão minorias grotescas. Os eventos da semana passada mostraram que essas pessoas continuarão a falar e atacar, mas que há cada vez menos gente que escuta. Ainda bem.
Acesse no site de origem: Uma semana das mulheres, por Ivan Martins (Época, 28/10/2015)