Por hora, 503 mulheres são vítimas de violência doméstica e familiar no Brasil. Treze mulheres por dia são vítimas de feminicídios no país. A cada onze minutos, uma brasileira é estuprada. Um estudo realizado em dez capitais no Nordeste concluiu que 27% das mulheres já sofreram algum tipo de violência doméstica. Como uma das estratégias de prevenção a esses crimes, foi lançada nesta sexta-feira, 25, a cartilha virtual “Todos e todas pelo fim da violência contra a mulher”, com o objetivo de que seja compartilhada pelas redes sociais digitais. A cartilha traz informações sobre as formas de violência de gênero física, moral e patrimonial, o ciclo de violência doméstica, além de informações sobre onde e como buscar ajuda.
(MPRS, 25/10/2019 – acesse no site de origem)
O lançamento ocorreu durante o evento Violência Doméstica – Diálogos Sobre a Lei Maria da Penha, ocorrido no Auditório Mondercil Paulo de Moraes. O primeiro palestrante foi o ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Cruz. Oriundo do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, o ministro é referência jurídica na área da violência contra a mulher.
Após ser apresentado pela coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa dos Direitos Humanos, Angela Salton Rotunno, Cruz falou sobre “A Lei Maria da Penha e a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”. Iniciou sua palestra lembrando do protagonismo do Ministério Público gaúcho em diversas questões, como, por exemplo, a iniciativa que deu origem à lei para minimizar os efeitos dos depoimentos de crianças e adolescentes vítimas de abuso.
Sobre o tema principal, falou da dificuldade de, como homem com uma formação patriarcal, tratar do tema em uma Instituição que tem como função interpretar as leis e criar diretrizes que sirvam para decisões futuras. “Estudamos, racionalizamos, mas a dor quem sente é a mulher”, disse, destacando que é um treino, uma reeducação diária. “O STJ é uma voz em favor dessa causa”, pontuou.
Conforme o palestrante, desde 2018, há um decréscimo de 20% nos casos de homicídio, mas um aumento nos feminicídios (4%) e violência doméstica (0,8%) e sexual (4%), o que, segundo ele, é um fenômeno mundial.
Rogerio Schietti Cruz apresentou a evolução da jurisprudência na interpretação e aplicação da lei Maria da Penha, inclusive com relação às mulheres transsexuais, as súmulas mais importantes do STJ à esse respeito e sobre violência sexual contra crianças e adolescentes, e as Resoluções do Conselho Nacional de Justiça envolvendo esses temas.
“A agressão a uma mulher traduz uma covardia que não pode ser tolerada, mesmo que não tenha marcas. Não mancha a pele, mas mancha a alma”, destacou Cruz.
Por fim, o ministro respondeu a diversos questionamentos enviados pelos participantes da plateia e lidos pela promotora-corregedora Carla Frós, que atuou como debatedora da mesa.
Medidas protetivas
Conforme dados do CNMP, 76% das vítimas de feminicídio consumado e 85% das vítimas de tentativa de feminicídio haviam sofrido atos de perseguição nos 12 meses anteriores ao feminicídio. Ainda, 41% dos agressores voltam a praticar violência contra as vítimas no período de até 30 meses após um incidente anterior de violência doméstica. A maioria das mortes de mulheres ocorre em contexto de relacionamento marcado por violências anteriores.
Para tratar sobre as medidas protetivas, sua natureza jurídica e parâmetros decisórios, ocorreu o primeiro painel da tarde, com o promotor de Justiça do Distrito Federal e Territórios Thiago André Pierobom de Ávila. As debatedoras foram as promotoras de Justiça Ivana Machado Battaglin e Catiuce Ribas Barin.
Thiago de Ávila falou que a violência contra a mulher é uma epidemia e, portanto, um problema de saúde pública. “Somos o quinto país do mundo com a maior taxa proporcional de feminicídios. Ser mulher no Brasil é perigoso”, disse. E há grupos que apresentam risco ainda maior, já que a quantidade de assassinatos de mulheres negras é substancialmente maior – 66%, mesmo que correspondam a 51% da população feminina. A hipótese dele é que, para as mulheres brancas, a Lei Maria da penha é acessível, bem como as políticas públicas, mas as mulheres negras, normalmente nas classes mais baixas, têm dificuldades de acessar as políticas públicas.
Nesse sentido, Thiago de Ávila aponta que as medidas protetivas de urgência têm caráter cível e, nesse sentido, “se prestam a proteger direitos fundamentais; elas não protegem processos, elas protegem pessoas”. “Se eu coloco a proteção como algo criminal, eu diminuo a abrangência da proteção”, apontou. Segundo ele, as medidas têm caráter de proteção urgente, e não de punição do agressor. “Se a mulher registra uma ocorrência, se diz que sofreu uma violência, na dúvida, eu peço a proteção”, afirmou o promotor. Em relação aos requisitos para solicitação, ele defende que a Lei Maria da Penha é um marco político na obrigação do estado brasileiro em ser eficiente em defender os direitos das mulheres. O palestrante citou uma pesquisa que apontou que, em 88% dos casos em que houve concessão de medida protetiva, não houve a reiteração de novos episódios de violência.
O promotor encabeçou a criação, no âmbito do MPDFT de um questionário, com 20 critérios a serem preenchidos para uma classificação de risco de casos de violência doméstica. O processo de criação dos quesitos iniciou em 2015 e, hoje, faz parte do protocolo de atendimento da Polícia Civil do Distrito Federal. Os principais fatores são: histórico de ameaças com faca ou armas de fogo, agressões físicas, perseguição, descumprimento de medida protetiva, histórico de violências anteriores, separação recente, ameaças para evitar a separação, sexo contra a vontade da vítima (inclusive dentro de relações conjugais), entre outros.
Conforme o promotor, o protocolo auxilia na distinção entre atitudes que são consideradas contravenções penais, mas que são tratadas como risco à vida das mulheres, como os crimes de ameaça e perturbação da tranquilidade, cujas penas são baixas, mas podem ensejar medidas protetivas que evitem o feminicídio.
Feminicídio e o papel do Ministério Público
Uma pesquisa desenvolvida pela promotora de Justiça de São Paulo Valéria Diez Scarance Fernandes com 364 denúncias provenientes de feminicídios cometidos em 121 cidades apontou que, em um terço dos casos, as mortes aconteceram aos sábados ou domingos, justamente quando a maioria das delegacias está fechada. Os crimes ocorreram de forma equivalente nos três turnos. A cada quatro feminicídios, um deles tem uma segunda vítima, como filhos, mães ou outros parentes. Em 66% dos casos, as mortes ocorreram em casa. De todas as vítimas, 97% não tinham medida protetiva e só 4% tinham registrado boletim de ocorrência. “Nossa atuação tem a potencialidade de salvar vítimas, isso não é retórica, as medidas protetivas salvam vidas”, disse a promotora. Ela foi a palestrante do painel “Feminicídio: da invisibilidade à incompreensão. Qual o papel do Ministério Público?”, do qual participaram como debatedoras as promotoras de Justiça Raquel Isotton e Andrea de Almeida Machado.
A pesquisa apontou que as armas mais usadas, em regra, foram facas, mas houve mortes também provocadas com as próprias mãos, fios de telefone, panelas, barras de ferro, martelos. “Quando eu orientar uma vítima quanto ao plano de segurança, uma das orientações é sobre como ela pode fugir de casa e, sabendo que a faca é um risco, ela precisa evitar a cozinha, por exemplo”, alertou. As armas de fogo foram responsáveis por 17% das mortes. “Todos os órgãos internacionais apontam a arma de fogo como fator de risco para o feminicídio”, disse. Conforme ela, o feminicídio é uma morte cruel e para matar, o agressor precisa chegar perto da mulher, dominá-la, portanto é preciso mais elaboração. “Com a arma de fogo, o homem pode alegar que ‘perdeu a cabeça’; a morte por arma de fogo é limpa, distante, sem contato físico, e ainda mais mulheres podem morrer”, alertou.
Abertura do evento
Ao abrir o evento, o procurador-geral de Justiça Fabiano Dallazen lembrou que o tema da violência contra a mulher vem se transformando em prioridade pelo agravamento, embora todos os esforços empenhados na questão. “São crimes que requerem enfrentamento organizado, quer na repressão, quer na prevenção, investimento e articulação das redes”. De acordo com Dallazen, tramita na Assembleia Legislativa projeto de lei que cria o quarto cargo na Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e mais oito no interior do Estado. “Nosso objetivo é um trabalho em rede, articulado”, disse o PGJ.
Também participaram da abertura do evento o corregedor-geral do MP, Ivan Saraiva Melgaré; o subprocurador-geral de Justiça Sérgio Hiane Harris; a vice-presidente da Famurs, Fábia Richter, prefeita de Cristal; a defensora pública Liliane Braga Luz Oliveira, a diretora do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MP, Caroline Vaz; a presidente da Associação do Ministério Público, Martha Beltrame; o ex-procurador-geral de Justiça, Cláudio Barros Silva; a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS, Cláudia Sobrero de Oliveira; e a sobrevivente de tentativa de feminicídio Bárbara Penna, presidente do Instituto que leva seu nome.
O evento foi promovido pelo Ministério Público, por meio do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, Corregedoria-Geral, Promotoria Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional.