Estratégia é foco de projeto em MS e de campanha da ministra Damares Alves
(Folha de S.Paulo, 03/05/2019 – acesse no site de origem)
Manicures, depiladoras e cabeleireiros são os novos aliados de autoridades no combate à violência contra a mulher.
A estratégia teve início no país com o projeto Mãos Empenhadas, lançado em 2017 em Mato Grosso do Sul, e que chegou em abril a São Paulo.
“Não queremos fazer de vocês nenhum expert ou feminista, nada disso”, explica o juiz Mário Rubens Filho, da vara de violência doméstica e familiar de Itaquera, para cerca de 25 funcionários da filial do salão Jacques Janine em Osasco. “Queremos que vocês entendam o que é a violência doméstica.”
O magistrado, junto com a promotora de Justiça Gabriela Manssur, foi o responsável por importar o projeto, criado pela juíza Jacqueline Machado, para São Paulo. A rede de salões —cujos cortes de cabelo custam, em média, R$ 145 e o serviço de manicure e pedicure, R$ 80— será a primeira no estado a recebê-lo.
Mas os organizadores pretendem estendê-lo a salões menores, da periferia. “A violência está em todo lugar, em todas as classes sociais”, diz Manssur. A promotora atendeu a atriz Luiza Brunet, agredida pelo ex-marido Lírio Parisotto.
O treinamento dura cerca de duas horas. De forma dinâmica e didática, explicam o que é a Lei Maria da Penha, os diferentes tipos de violência —física, psicológica e verbal— e como orientar uma cliente a denunciar uma agressão.
Experiências de funcionárias pipocam. Uma delas conta que já viu uma cliente com olho roxo chegar a um salão no qual trabalhou. Outra, que uma mulher quis pagar pelos serviços de beleza em dinheiro, com medo de que o marido controlador descobrisse o quanto tinha gastado.
Compartilham com as colegas até situações vividas em casa. A recepcionista Claudia Medeiros, 37, revela que cresceu em um ambiente no qual o pai era violento com a mãe. Os episódios a levaram a desenvolver depressão e síndrome do pânico. Por isso, diz, não tolera esse tipo de conduta.
A modelo Jessica Aronis, 28, agredida pelo ex-companheiro, foi escolhida como madrinha do projeto em São Paulo. Ela, que contou a sua história em uma palestra TEDx no fim do ano passado, também compareceu ao treinamento em Osasco.
Ela diz que o seu cabeleireiro teve papel importante para que “enxergasse uma situação que não conseguia enxergar”. “Às vezes, a manicure e a depiladora sabem mais da sua vida do que a psicóloga ou a mãe”, afirma. “O dia a dia é tão corrido que você chega ao salão querendo desabafar.”
Para Manssur, o salão é um bom espaço para a iniciativa porque é “um lugar onde as mulheres sentem confiança”: “Elas criam vínculos com as manicures, com as cabeleireiras. Se sentem confortáveis e acolhidas.”
O objetivo não é substituir a assistência jurídica e psicológica de que a vítima precisa, diz o juiz Mário Rubens Filho, mas “explicar o que fazer em um momento de estresse ou urgência” para que o ciclo de violência seja quebrado.
Ao fim do treinamento, manicures, esteticistas e cabeleireiros saem com um certificado e com uma pasta que contém papéis como uma cartilha do Ligue 180 e um manual da Lei Maria da Penha.
Em Mato Grosso do Sul, o projeto já está na décima edição. Mais de 200 funcionários foram capacitados desde o início.
Uma delas foi a manicure Sheila Sandim, 46, que trabalha em um salão em Santa Fé, bairro nobre de Campo Grande. Conta que já ajudou três vítimas —uma colega de trabalho, uma conhecida e uma cliente.
“Antes do treinamento, eu pensava, ‘ah, é mulher de malandro, volta para casa porque gosta de apanhar’”, afirma. “O curso parece que abre a mente. Às vezes, a pessoa não tem coragem, nem conhece alguém para orientar.”
A juíza Jacqueline Machado conta que pretende ampliar o projeto para outros estados, como Rio de Janeiro, Pará e Piauí. Neste ano, firmou uma parceria com o Senac de Mato Grosso do Sul para que os cursos profissionalizantes de manicure, cabeleireiro e esteticista incluam a capacitação.
Foi no Mãos Empenhadas que o MDH (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) se inspirou ao criar uma campanha de treinamento de profissionais da beleza para ajudar vítimas de violência doméstica.
As duas iniciativas são independentes, mas a pasta afirmou que não descarta uma parceria no futuro. O maquiador Agustin Fernandez, 26, que ficou conhecido após declarar apoio ao presidente Jair Bolsonaro (PSL), é um dos rostos da ação do governo.
O projeto ainda não está bem delineado. Segundo o MDH, a proposta é que o treinamento seja feito por voluntários ou em parceria com empresas privadas. Ainda não há data para o início das capacitações —as parcerias estão sendo firmadas. Também não foi informado quanto será investido na ação.
Depois, o treinamento deverá ser estendido para representantes de confissões religiosas e funcionários de academias.
A capacitação nos salões é uma das ações dentro da campanha “Salve uma Mulher”, lançada em março pela ministra Damares Alves. O objetivo, diz a pasta, é “incentivar a sociedade como um todo a perceber as marcas de violência doméstica” e estimular denúncias.
A iniciativa vem na esteira de declarações polêmicas da ministra. Em fevereiro, Damares falou em entrevista à rádio Jovem Pan que aconselhava pais e mães de meninas a fugirem do Brasil, “pior país da América do Sul” para criá-las. Em seguida, disse que seria preciso mudar esse quadro de abusos.
Os Estados Unidos investiram em ação semelhante. O estado de Illinois, por exemplo, exige desde 2017, por lei, que profissionais de beleza sejam treinados para agir em casos de violência. O treinamento deve ser refeito a cada dois anos.
Há, contudo, quem não aprove a iniciativa. Para Jureuda Guerra, especialista em saúde e conselheira do Conselho Federal de Psicologia, o projeto desqualifica o profissional de psicologia. “Uma coisa é saber escutar, ter empatia e oferecer ombro amigo”, diz. “Outra coisa é prestar um atendimento profissional, técnico, pautado em ciência.”
Segundo ela, pode ocorrer um “atravessamento moral” durante o aconselhamento: “Os psicólogos seguem um código de ética. E se o profissional de beleza falar: ‘Dá mais uma chance, não é bem assim’?”
Para Silvia Badim Marques, do departamento de Saúde Coletiva da UnB (Universidade de Brasília), a capacitação de profissionais de saúde, de professores e de agentes comunitárias pode ser alternativa mais eficaz. “Mas entendo que o salão é um lugar importante para muitas. Não vejo problema se for conjugado com outras iniciativas”, diz.
As políticas públicas para combater a violência devem ir além dos salões, diz a socióloga Eva Blay, coordenadora do USP Mulheres. É preciso, segundo ela, explicar para meninos e meninas, desde cedo, o que é gênero, respeito e que a igualdade de direitos é um tema fundamental: “E que a violência acontece justamente dentro de casa.”
Júlia Zaremba