(Alan Watson, para o The New York Times/O Estado de S. Paulo) Por seis décadas, coube a Elizabeth II influenciar sem governar; enquanto Thatcher se negava a condenar o apartheid, por exemplo, a monarca defendia um mundo multirracial
Um reinado de 60 anos: período que incluiu 12 presidentes americanos, 6 papas, 12 primeiros-ministros britânicos – começando com Winston Churchill -, a queda do muro de Berlim, a dissolução da União Soviética, a formação da União Europeia, o fim do Império Britânico e o crescimento de uma Comunidade Britânica multirracial.
O que a Rainha Elizabeth II fez, entretanto, foi reinar, não governar: a marca estabelecida por ela não está na esfera do governo. A monarquia moderna não dá início a guerras nem molda as políticas domésticas. Assim, enquanto a Grã-Bretanha e a Comunidade Britânica celebram seu jubileu de diamante, as pessoas começam a pensar nas perguntas inevitáveis: quais foram os feitos dela, afinal? Que diferença ela fez? Como devemos avaliar os anos dela no trono? Durante décadas do reinado da rainha, os governos britânicos se viram ocupados com a “gestão do declínio” – do império e da vitória na 2.ª Guerra para o status de potência intermediária. Neste período, a influência e o simbolismo da coroa se fizeram presentes em tudo. A rainha não se opôs a mudanças nem ajudou a Grã-Bretanha a evitá-las. Em vez disso, ela possibilitou a mudança sem desespero.
Sua permanência conferiu aos britânicos a confiança em si mesmos de que necessitaram. O poeta Philip Larkin disse-o bem: Numa época em que nada resistiu / Em que tudo piorou ou estranho se tornou / A bondade dela nunca nos traiu / A rainha jamais mudou.
Tudo isso é mesmo ótimo. Mas, depois de 60 anos, seria de se esperar mais. Houve alguma mudança que possa ser atribuída diretamente a ela? Em se tratando das monarquias modernas, a influência é mais facilmente detectada do que a ação – mas seu poder às vezes dura muito mais, especialmente diante da transição de império colonial para Comunidade Britânica cosmopolita.
Como Princesa Elizabeth, ela visitou a Cidade do Cabo com os pais em 1947, pouco antes de o império se desfazer e a Comunidade Britânica moderna e multirracial vir à tona. Depois da viagem dela, num famoso discurso transmitido, ela anunciou o compromisso de sua vida, “seja ela curta ou longa”, à família de países conhecida hoje como Comunidade Britânica.
Um ano mais tarde, o Partido Nacional Africâner chegou ao poder e os anos do apartheid tiveram início. É sabido que, durante a visita de 1947, o pai dela, George VI, ficou indignado diante da oposição das autoridades ao desejo dele de condecorar sul-africanos negros (ou não brancos, nos termos da época) pelo serviço prestado durante a guerra. Parece claro que a filha dele compreendeu sua atitude e concordou com ela.
Esse compromisso primário com a natureza multirracial do contexto da Comunidade Britânica emergente – em vez de uma tentativa revanchista por parte dos brancos para reafirmar sua mão firme no controle, por exemplo – foi mantido na consciência e no coração dela durante todo o seu reinado.
Sem ambiguidades. Não houve nenhum tipo de ambiguidade na contribuição dela para a transformação de um Império Britânico relativamente racista numa Comunidade sólida e multirracial.
A fotografia dela dançando com o presidente negro de Gana, Kwame Nkrumah, durante a celebração de independência daquele país em 1961, indignou os brancos sul-africanos. Não se tratou de uma afirmação de suas políticas, mas nem por isso a mensagem contida nesse gesto perdeu sua força diante dos milhões de cidadãos da Comunidade: a rainha estaria ao lado deles, independentemente de sua raça, etnia e nacionalidade.
Em outros momentos, a rainha telegrafou sua posição de maneiras menos públicas, mas não menos óbvias. Poucos sabem, por exemplo, o que a rainha diz nas audiências particulares semanais com seus primeiros-ministros, nem o que estes dizem a ela – nem mesmo o gabinete sabe isso. Mas havia uma diferença inegável entre a atitude dela e a de Margaret Thatcher com relação ao apartheid.
A primeira-ministra se opôs às sanções contra a África do Sul e recebeu uma condecoração do governo sul-africano, enquanto a rainha claramente esperava que uma África do Sul multirracial pudesse voltar para a Comunidade Britânica. Por mais que a rainha não pudesse ditar a conduta de Thatcher enquanto primeira-ministra, seu claro apoio ao movimento antiapartheid ajudou a relativizar – sem enfraquecer – a posição da primeira-ministra aos olhos do mundo.
Em nenhum momento o apoio dela foi mais claro do que na sua manifestação de júbilo diante da libertação de Nelson Mandela em 1990.
Três anos antes de Mandela ser eleito presidente, a Elizabeth II não hesitou em convidá-lo para uma reunião do grupo dos Chefes de Governo da Comunidade Britânica, indicando sua crença de que ele já era o líder do país – ao menos do ponto de vista moral.
E ela não demorou em fazer uma visita de Estado à África do Sul após a eleição dele, em 1994 – parabenizando o Parlamento sul-africano pela transformação do país e felicitando Mandela pelo papel desempenhado nessa mudança. Para tornar sua admiração e apoio ainda mais claros, ela concedeu posteriormente a Mandela a mais elevada honraria do país, a Ordem do Mérito.
Os mesmos valores que definiram a posição da rainha em relação à África do Sul também nortearam o “relacionamento especial” da Grã-Bretanha com os Estados Unidos. Este relacionamento não consiste numa aliança igualitária com base no poder duro, embora o relacionamento entre os Exércitos e serviços de informações seja de grande proximidade. No fim, trata-se de uma aliança alicerçada na afinidade: os dois países são unidos por crenças partilhadas no respeito aos direitos humanos, no estado de direito, no governo democrático, na liberdade de empreendimento e na diversidade – valores que a rainha simboliza tanto institucional quanto pessoalmente.
Quando ela esteve em Jamestown, Virgínia, em 2007, para comemorar o 400.º aniversário da primeira colônia inglesa permanente no Novo Mundo, ela celebrou o idioma hoje partilhado por quase todo o mundo, que encontrou seu primeiro abrigo do outro lado do Atlântico naquele momento. Mas, com o maior dos cuidados, ela também cumprimentou os líderes indígenas que representavam as tribos que tiveram o primeiro contato com os ingleses naquela época – gesto que só teria ocorrido a uma pessoa dotada de grande sensibilidade e conhecimento da história americana, comprometida com a democracia multirracial.
O respeito dela pelas tribos e sua afeição pelos EUA e os americanos são fundamentais para o presente e o futuro do relacionamento entre os dois países.
Essas qualidades refletem com precisão a política do governo, mas, diferentemente da arte de governar, a atitude dela emana do coração. A rainha não é uma líder política, mas, de maneiras profundas, ela liderou a política de sua era.
ALAN WATSON é Barão de Richmond, presidente do Conselho das Sociedades da Comunidade Britânica e coautor de “The Queen and the USA”.
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Acesse em pdf: Por que a rainha é importante?, por Alan Watson (O Estado de S. Paulo – 10/06/2012)