(O Globo) Para cumprir a lei eleitoral que obriga todos os partidos a terem pelo menos 30% de mulheres candidatas, algumas legendas têm recorrido a uma brecha na legislação. Procuram servidoras públicas — civis e militares — e, ao pedir sua adesão, informam-lhes que, por lei, elas têm direito a solicitar três meses de licença remunerada, que não são obrigadas a fazer campanha e que não existe qualquer mecanismo que fiscalize ou penalize o candidato sem comprometimento político. Dessa forma, enquanto os partidos cumprem a cota de gênero, as servidoras conseguem ampliar licenças-maternidade, prolongar férias ou antecipar a ida para a reserva.
Em Niterói, pelo menos três PMs encaixam-se no perfil descrito. Sabrina Santos, cabo de 31 anos lotada no 12º Batalhão de Polícia Militar (BPM), está nas últimas semanas de gravidez e, em seu Facebook, esse é o único assunto. Na página, não há menção ao número 55.968, de sua candidatura. Na casa dela, não há sinais de campanha. Na de sua mãe, pendurou-se a placa de um candidato de outro partido. Sabrina não quis dar entrevista ao GLOBO.
Candidatas não fazem campanha
Francineide Fernandes, soldado de 31 anos do mesmo batalhão, põe fotos de praia no Facebook, mas não cita o número 55.337, com o qual concorre. Em sua rua, não há cartazes ou faixas dela. Vizinhos negam que por ali viva uma candidata. Procurada, Francineide também não retornou.
Rosane dos Santos, sargento de 50 anos, é a mais velha das três. Como as demais, não faz campanha e declarou gasto parcial zero na prestação de contas à Justiça Eleitoral. Rosane foi procurada na região onde mora, por meio da assessoria de impressa da PM e em seu batalhão, o 7º BPM (São Gonçalo). Nunca retornou. Segundo dados oficiais, ela já solicitou ida para a reserva.
Militares do Corpo de Bombeiros também engrossam a lista dos candidatos a vereador do Rio. Sete delas vêm da área de enfermagem e estão filiadas ao PTdoB.
— Já disse que somos o PT das Bombeiras — ironizou o presidente regional do partido, Vinícius Cordeiro. — Fui oficiado pelo comandante delas para saber se eram mesmo candidatas. Ele estava desesperado com o desfalque. Respondi que oficialmente sim, que havia dado a todas material de campanha, conversado com elas e tentado jogar com a conscientização da importância de se dedicarem à disputa. Mas não dá para monitorar.
Cordeiro classifica a brecha utilizada como um “subproduto negativo” da interpretação que o TSE deu à lei do gênero.
— Quase todos os partidos recorrem a servidoras. Pode procurar entre as funcionárias públicas civis também — sugeriu. — A licença remunerada de três meses é garantida a todos os servidores e não há nada que obrigue as mulheres a abraçar a campanha.
E a mobilização dos partidos nos quartéis já virou queixa na Associação dos Ativos, Inativos e Pensionistas das Polícias Militares, Brigadas Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (Assinap). Segundo Miguel Cordeiro, seu presidente, a busca por militares tem a ver com o fato de elas não terem que cumprir um ano de filiação partidária, o que é exigido aos civis.
— Há denúncias de partidos que até pagam às PMs mulheres — conta Cordeiro. — Como elas podem entrar nas listas depois da convenção, são cooptadas na última hora mesmo.
Sérgio Reimol, presidente do PSD em São Gonçalo, reconhece o uso da brecha.
— Tínhamos mulheres com impedimento de vir (concorrer). Então lançamos mão das militares, mas todas concordaram em participar — destacou.
— Aqui no Rio, isso só não aconteceu porque diminui o número de homens — informou Indio da Costa, presidente regional do PSD. — O partido poderia ter lançado 75 nomes para vereador. Saiu com 60 porque era o que a cota de mulheres permitia.
No Rio: R$ 1,86 milhão só em licenças
Para Indio, a lei de gênero é “uma irracionalidade que, em vez de reservar vagas para mulheres que queiram participar, leva outras a entrar na lista”.
Jorge Florêncio, presidente estadual do PT, conta que as servidoras públicas também já descobriram o filão.
— Fomos procurados por uma professora pública do interior que queria ser candidata para pegar a licença e resolver problemas pessoais. Negamos.
Para Florêncio, a lei de gênero é necessária, mas precisa enfrentar “o interesse dos homens”.
— Para cada mulher que falta na lista, o partido perde 2,3 homens — destaca Luiz Paulo, presidente do PSDB no Rio. — O ideal era que, após a eleição, o Ministério Público Eleitoral cruzasse a lista de candidatos com pouquíssimos votos e a dos que tiveram gasto de campanha zero. Encontraria esses artifícios.
Em todo o país, 3.381 PMs (homens e mulheres) estão em disputa. Só no Estado do Rio, para vereador, são 366. Tomando por base o salário mais baixo da corporação fluminense (R$1.700, de um soldado), o estado terá que desembolsar ao menos R$ 1,86 milhão com a licença de três meses de seus servidores-candidatos. Não há na PM auditoria para levantar os nomes dos que realmente lutam por um cargo eletivo.
PM cria carro de som e faz jingle
Exceção na lista das policiais militares que se candidataram a um posto de vereador na Câmara de São Gonçalo e não fazem qualquer esforço de campanha, a cabo Jaqueline Braga, lotada no 12º BPM (Niterói), mergulhou na política junto com o marido, que também é da PM. No caminho, levou junto toda a família.
Jaqueline conta ao GLOBO que nunca havia cogitado concorrer a um posto eletivo, mas que, ao receber o convite de um amigo de infância filiado ao PSD, resolveu aceitar. Decidiu dar esse passo mesmo sabendo que o objetivo do partido era apenas completar a cota de mulheres, necessária à lista da legenda. Ao contrário das colegas de farda, Jaqueline é facilmente encontrada pela ruas de São Gonçalo. Gosta de distribuir seus santinhos, com um sorriso farto.
— Quando fiz o concurso para a Polícia Militar, pretendia apenas acompanhar uma amiga que me pediu ajuda. Acabei me tornando policial e adoro o que faço. Desta vez, por acaso, me chamaram para me candidatar. Levo a maior fé na minha eleição. Sei que um vereador não consegue fazer muito pela minha categoria, mas vou lutar por mais creches municipais.
A animação da militar em campanha é tanta que ela adaptou o carro com uma caixa de som e compôs um jingle com seu número. Quando sai, solta a voz com o 55.812.
Acesse o pdf: Partidos ‘atacam’ quartéis para cumprir cota de mulheres (O Globo – 28/09/2012)