(Agência Patrícia Galvão, 26/10/2015) Médicos entrevistados pela Agência Patrícia Galvão avaliam que propostas de mudanças demonstram desinformação sobre o tema e frisam: uma eventual aprovação do projeto de lei nesses termos representaria um enorme retrocesso para o atendimento humanizado às vítimas de violência sexual e para a saúde pública brasileira.
A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta-feira (21/10), o Projeto de Lei nº 5069/2013, que modifica a Lei de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Lei nº 12.845/2013). A propositura é de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e do relator do PL na CCJ, deputado Evandro Gussi (PV-SP), e apresenta uma nova formulação na tentativa de diminuir as ‘polêmicas’ em torno do texto, cuja ementa esclarece que o projeto “tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto”.
>> A tramitação do PL pode ser acompanhada aqui e a versão aprovada pela CCJ pode ser conferida neste link.
Para repercutir as supostas ‘polêmicas’, a Agência Patrícia Galvão ouviu dois médicos com larga experiência no atendimento a mulheres vítimas de violência: Ana Flávia D’Oliveira, docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; e Cristião Rosas, obstetra e chefe do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Maternidade-Escola de Vila Nova Cachoeirinha, também na capital paulista.
O que dizem os especialistas
Para ambos, as mudanças propostas demonstram distanciamento e desinformação, tanto sobre a atuação dos profissionais de saúde como da dura realidade enfrentada por quem é vítima de uma violência extrema como o estupro. Essas alterações podem, por um lado, gerar um ambiente de insegurança jurídica para a atuação dos profissionais de saúde, além de contrariar os deveres éticos de médicos. Por outro lado, reforçariam um ambiente marcado por preconceitos que motivam uma desconfiança exagerada em relação à palavra da mulher – o que pode ser extremamente revitimizador, agravando os traumas sofridos.
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De acordo com os médicos, a experiência cotidiana mostra que é um mito pensar que as mulheres irão mentir sobre ter sofrido um estupro para ter acesso ao aborto previsto em lei. Ambos lembram que os profissionais de saúde são treinados e obrigados a seguir protocolos que, inclusive, evidenciariam uma eventual mentira nesse sentido. Mas ressaltam que é raríssimo que isto ocorra no dia a dia do atendimento.
Além disso, os médicos lembram que nem toda violência sexual deixa marcas evidentes que poderiam ser verificadas em exames de corpo de delito – o estupro pode acontecer com ameaça mediante uso de armas ou outras formas de coerção às quais as vítimas ficam impossibilitadas de reagir – muito comum nos casos de estupro contra crianças, por exemplo.
Os profissionais entrevistados ressaltam que, se por um lado os episódios de mulheres que mentem sejam raros, a prática da violência sexual contra meninas, mulheres adultas e idosas, infelizmente, ainda é uma violação de direitos humanos que acontece cotidianamente no Brasil. Em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país – ou seja, computando apenas os casos registrados, houve ao menos um estupro a cada 11 minutos no Brasil.
É preciso destacar que ser vítima de violência sexual ainda é um tabu em uma sociedade em que padrões culturais discriminatórios com a condição feminina estimulam, muitas vezes, uma inversão que coloca no comportamento da vítima a ‘culpa’ ou uma ‘justificativa’ pelo crime praticado contra ela. Não à toa, estimativas apontam que este é um crime com altas taxas de subnotificação, e o acolhimento humanizado é apontando como um dos principais elementos para reverter este problema.
Confira a seguir a análise dos profissionais sobre os principais pontos em debate com a tramitação do PL:
Aprovação do Projeto de Lei nº 5069/2013 pela CCJ
Dr. Cristião Rosas: “É um grande retrocesso. Este Projeto de Lei limita a ação do profissional de saúde nas orientações que ele pode dar a uma paciente, o que é o dever de um médico. Me causa muita preocupação que o PL tenha passado na CCJ, porque no meu entendimento ele inclusive tem um componente inconstitucional ao atingir o direito à saúde, algo que o Supremo Tribunal Federal terá que olhar caso a proposta siga adiante. A aplicação do que está no texto poderia limitar informações sobre agravos e sobre a redução de danos, cerceando a liberdade do profissional de saúde e da paciente. Como cidadão brasileiro, fico muito descontente e não concordo de maneira nenhuma com esta proposta. Creio que a sociedade irá perceber o equívoco de um projeto como esse.”
Violação de direitos, normas e tratados internacionais
Dra. Ana Flávia D’Oliveira: “É uma violação de direitos. Apesar de o PL não atacar os casos de interrupção da gravidez previstos em Lei, ele aumenta as exigências. Uma mulher que foi estuprada e busca assistência na saúde, por vezes, não quer ou não se sente à vontade ou mesmo segura para fazer a denúncia policial. Nesse sentido, a norma técnica sobre a coleta de vestígios de violência sexual, feita pelo Programa Mulher, Viver sem Violência, do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos junto aos ministérios da Saúde e da Justiça, tem buscado a proteção dos direitos das mulheres que já tiveram o direito violado, porque foram estupradas. O compromisso do Estado brasileiro, ratificado nas conferências internacionais, é proteger o direito dessas mulheres e a saúde delas. É uma afronta à integridade, à autonomia e aos direitos das mulheres. É inadmissível! Espero que a Câmara tenha bom senso de evitar esse retrocesso.”
Criminalizar quem orienta ou instrui sobre o aborto seguro
Dr. Cristião Rosas: “É importante destacar que não se pode confundir induzimento ao aborto, forçar o aborto, com informações de saúde que precisam ser dadas a qualquer pessoa. Nosso próprio código de ética nos obriga a tratar com qualidade e zelar pelo bem estar do paciente. Estamos obrigados a dar informações, falar sobre prognóstico, diagnóstico, riscos envolvidos.
A outra questão que me preocupa é o que irá significar na prática o que está sendo criminalizado no PL como ‘anunciar substâncias que provocam aborto’. Se estou em um Congresso, dentro da academia, este ponto não poderá ser discutido? Dentro de um protocolo clínico não poderá constar que a substância provoca o aborto? Ou no caso de um laboratório que produz um determinado medicamento para os casos do aborto previsto em lei no Brasil, como fica isso? Até mesmo para alertar as gestantes que desejam aquela gravidez, é preciso informar sobre esta questão.
Além disso, a redução de danos e riscos é uma obrigação ética de todo profissional de saúde e uma questão central para a medicina preventiva. Quando em campanhas para a redução da transmissão de HIV são distribuídas seringas para usuários de drogas, por exemplo, estamos buscando reduzir danos, apesar do consumo daquela substância ser ilegal.
Pelas experiências de outros países, sabemos que criminalizar o aborto não diminuiu a prática em nenhum lugar do mundo. Pelo contrário, ao jogar a questão para a clandestinidade, estimula-se todo esse uso de métodos absurdos e, no Brasil, quem morre de aborto ou perde seu útero por uma infecção são as mulheres mais pobres. O profissional de saúde tem que poder orientar aquela mulher que usar uma agulha de tricô ou jogar éter no útero não é seguro. É seu dever profissional e ético instruir gestantes sobre as questões envolvidas no aborto, seja o induzido externamente por ela na clandestinidade, ou aquele que é realizado nos hospitais dentro dos preceitos legais. Por isso, vejo esse ponto com muita apreensão; o que ele propõe está na contramão do que preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
Isso é impensável, não podemos de forma alguma limitar o direito de acesso à saúde. Se chegar um baleado e um esfaqueado no pronto-socorro, você vai pedir para aquela pessoa fazer Boletim de Ocorrência primeiro? Essa proposta é tão primária do ponto de vista de garantia de acesso, que não posso acreditar que isso vá vingar no texto final do Congresso Nacional. O estupro é uma violência, há mulheres que chegam muito machucadas, não dá pra mandar para delegacia.
É a desinformação que leva a esse tipo de texto. Ainda se tem uma visão de que é um crime contra os costumes, mas é um crime contra a vida e precisamos pensar em como se sente quem sofre essa violência. Exigir BO ou exame de corpo de delito é só mais um passo burocrático que desumaniza o atendimento. Mesmo porque, por vezes, o estupro é cometido sob ameaça e não deixa marcas físicas evidentes. Há casos também em que a mulher tem medo do violador e não tem coragem de ir na polícia – isso quer dizer que ela não poderá ter acesso ao devido atendimento de saúde? Já tivemos casos, inclusive, de estupros cometidos por agentes da segurança e, por isso, a mulher não queria procurar a polícia. Como fica nesse caso?”
É preciso priorizar o atendimento humanizado a quem foi vítima de um crime bárbaro
Dra. Ana Flávia D’Oliveira: “A violência sexual é cometida, geralmente, de forma individual e sem testemunhas. A vítima costuma ter muita vergonha da revelação. Por isso, quando a revela, uma das coisas mais importantes é ser acreditada. Se você é desacreditada nessa revelação isso é sentido como uma segunda violência e uma grande impotência, porque o reconhecimento da violência e da injustiça do ato, quando as pessoas em volta compreendem, é uma primeira reparação. Quando as pessoas ficam em dúvida, a pessoa que revelou fica arrependida de ter contado. Na história, houve épocas em que você precisava correr nas ruas e ter testemunhas para comprovar que houve a violência. É essencial acreditar na palavra da vítima, e quem está acostumado a lidar com vítimas percebe a dificuldade de inventar uma história dessas.”
É um enorme equívoco pensar que muitas mulheres reportarão falso estupro para acesso ao aborto legal
Dra. Ana Flávia D’Oliveira: “O contra-argumento é de que a pessoa pode mentir. Acho que isso pode acontecer, não podemos ser ingênuos, mas acho que esse papel de questionar é da Justiça e não da Saúde, porque se o que a pessoa me contar não for factualmente correto, vai aparecer ao longo do atendimento. Entendo a preocupação das pessoas, mas asseguro como médica, acostumada a lidar com casos, que isso não ocorre, porque é preciso seguir todo um procedimento e as mulheres teriam que sustentar uma mentira para profissionais com competência para escutar e que sabem como é essa história.
Tenho alunas que fazem estágio em serviços de atendimento, inclusive temos um na USP. Escuto vários relatos internos e, primeiro, não noto nenhum aumento da procura pelos serviços. Segundo, para uma mulher realizar o procedimento de interrupção da gravidez, ela precisa passar por uma consulta com a assistente social, psicólogo, médico – e nunca ouvi um caso em que ficasse claro que uma mulher estivesse enganando os profissionais, até porque, em uma situação tão grave como essa, falando para pessoas experientes em atender vítimas de estupro, a mentira é quase impossível, porque se conhece o perfil do relato e das reações das mulheres que sofreram violência sexual.”
Procedimentos existentes já coíbem falsa denúncia de estupro
Dr. Cristião Rosas: “Temos que seguir passos para a autorização e justificação dos procedimentos de interrupção da gravidez, que envolvem cinco documentos: termo circunstanciado feito pela mulher, de próprio punho, relatando a situação; um parecer técnico, com ultrassom, que permite comparar o tempo de gestação com o da violência sexual sofrida. Além disso, a paciente assina um termo de que tomou ciência de que deve falar a verdade, caso contrário pode estar incorrendo no crime de falsidade ideológica e aborto ilegal, caso no futuro descubra-se que ela fez falsas alegações. Há ainda uma ata de reunião da equipe multiprofissional que atendeu aquela vítima, dando um parecer sobre o caso – com a avaliação da psicóloga, assistente social, enfermeira e a equipe médica. E, por fim, há ainda um termo de consentimento informado. A mulher assina que recebeu todas as informações, tanto sobre o aborto previsto em lei quanto sobre seus direitos e atendimentos caso deseje levar a gestação adiante.
Quando há o Boletim de Ocorrência, ele é anexado a tudo isso. E um BO é uma mera comunicação de um fato. A mesma informação que ela dá para o delegado, ela dá para o profissional de saúde. Além disso, exigir o BO é obrigar a mulher a um passo a mais, que é perfeitamente coberto pelas normativas que temos hoje.
O transtorno de estresse pós-traumático de uma vitima é intenso e ela precisa receber todo apoio necessário para minimizar as consequências daquele ato na sua saúde física e psicológica. Esse é o risco de se legislar sobre o que não conhece. E pensar que toda mulher é uma mentirosa em potencial é só mais uma demonstração da discriminação contra as mulheres.”
Preconceito desencoraja busca por ajuda
Dra. Ana Flávia D’Oliveira: “No caso daquelas que buscam o serviço após o estupro, no primeiro atendimento, a pílula de contracepção emergencial resolve a maioria dos problemas. Se chegarem grávidas, o check list é tão pesado que o risco é ao contrário – de uma mulher ser desqualificada pelo serviço por algum estereótipo e de não considerarem a palavra da mulher – do que ela mentir ter sido vítima de violência sexual. No caso mais comum de violência sexual, que é a marital, cometida pelo parceiro, a subrevelação é ainda maior. É raríssimo a gente ter relatos de estupros maritais e ter a possibilidade do aborto legal, o que é um direito por lei, mas que acaba não sendo efetivado, pela própria dificuldade das mulheres.
As equipes são treinadas para reconhecer quando os pacientes estão, de alguma forma, ludibriando. Não acho que as mulheres brasileiras estejam usando desse recurso. Se usassem, provavelmente teria uma diminuição da mortalidade materna por aborto. Elas não usam porque se sentem envergonhadas em mentir e porque sabem que, em uma situação de consulta individual, uma mentira será pega, porque é preciso cruzar o dado da última menstruação, data do estupro, semanas de gravidez, no caso daquelas que já chegam grávidas.”
Cláusula de consciência não é omissão de socorro
Dr. Cristião Rosas: “A objeção de consciência não é a mesma coisa de omissão de socorro. A postura ética do profissional de saúde é acolher o pedido, compreender que ele é divergente da sua opinião, ter sensibilidade para o sofrimento da pessoa para comunicar isso de forma respeitosa e encaminhar o caso para outro profissional – e é dever da instituição garantir que haja o atendimento. E, ainda, é preciso fazer tudo isso com a agilidade necessária para que sejam garantidos os direitos da paciente, para que não haja agravo da situação de saúde, nem se coloque em risco a vida da mulher, sobretudo em casos de urgência.”
Instituição tem o dever de garantir o atendimento
Dra. Ana Flávia D’Oliveira: “A cláusula de objeção de consciência é colocada pelo Conselho Federal de Medicina e é uma prerrogativa do profissional, mas o serviço e a instituição são obrigados a fornecer todos os serviços que são direitos das mulheres. Tenho visto essa cláusula ser usada não só para não fazer o procedimento da interrupção da gravidez, como também, na medicina da família, por profissionais que se negam a prescrever contraceptivos. A cláusula precisa ser respeitada pelos profissionais, mas as supervisões de saúde e os gestores precisam garantir que o serviço será garantido. Isso não pode ser um obstáculo para a efetivação do SUS.”
Veja também: Em entrevista ao Dossiê Violência contra as Mulheres, o juiz José Henrique Torres (TJSP) destaca a importância de reverter preconceitos que geram um questionamento exagerado e revitimizador da palavra da mulher e enfatiza: o acesso à saúde é um direito!
Ana Flávia D’Oliveira
Médica e docente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
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Cristião Fernando Rosas
Obstetra e chefe do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Maternidade-Escola de Vila Nova Cachoeirinha em São Paulo
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José Henrique Rodrigues Torres
Juiz de direito, titular da 1ª Vara do Júri de Campinas/SP. Membro do Grupo de Estudos sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO)
(19) 99174-7568
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