(El País, 31/12/2015) Para fechar 2015, ano marcado pela mobilização feminista no Brasil, EL PAÍS conversa com ativistas com visões díspares e objetivos iguais aqui e fora. Na região, batalha contra o retrocesso
Morena Herrera começou a lutar contra as injustiças sociais em El Salvador, em 1975. Tinha 15 anos. Cinco depois, em plena guerra civil em seu país, entrou na guerrilha; primeiro na urbana, depois na rural. Em 1974, a milhares de quilômetros, em Madri, uma jovenzíssima Justa Montero saía à rua, ainda em plena ditadura franquista, para exigir igualdade de direitos entre homens e mulheres. Ativava-se na Espanha o movimento feminista. Na época, nem Jimena Cazzaniga nem Carlota Álvarez tinham nascido. A realidade com que se defrontaram estas duas jovens, hoje com 30 e 22 anos, não tem nada a ver com a vivida por Herrera e Montero. No entanto, suas lutas são parecidas. El País Semanal reuniu estas quatro feministas para conversar sobre os avanços da situação da mulher e as metas a se alcançar no sentido da igualdade real. Em 40 anos, concordam, avançou-se muito, mas também há retrocessos preocupantes.
Leia também:
As protagonistas de 2015 foram as mulheres (Brasil Post, 31/12/2015)
Por um 2016 das mulheres, por Nana Soares (O Estado de S.Paulo, 31/12/2015)
2015: o ano das mulheres (Agência Brasil, 31/12/2015)
Sentadas em volta de uma mesa na sede da Assembleia Feminista de Madri, as quatro compartilham o início de suas lutas contra a desigualdade. “Agora, as mulheres são outras mulheres. Minha vida na época não tem nada a ver com a das jovens de agora”, sorri Montero, com seus 60 anos e uma das integrantes históricas do movimento feminista na Espanha. Para Cazzaniga e Álvarez a radiografia do país feita por Montero parece muito distante. Uma época em que as mulheres não podiam abrir conta em banco, não havia a possibilidade de se divorciar e tanto os anticoncepcionais como o aborto eram proibidos. “Havia o dote, em alguns acordos coletivos constava que era dado às mulheres que se casavam e deixavam seus postos de trabalho. Considerava-se que o bem jurídico a proteger era a honra das mulheres, não sua liberdade sexual. O sexo para as mulheres era como o anúncio daquele conhaque, coisa de homens, e aquelas que tinham outra opção social não só eram invisibilizadas como também a lei as penalizava com a prisão”, recorda Montero.
Os avanços sociais. Hoje, quase tudo isso é história. No entanto, a igualdade ainda não é real. O desemprego, afirma Cazzaniga, afeta mais as mulheres: com um índice de 53% diante de 47% dos homens. Também a crise econômica abateu a elas em maior medida. “Não esqueçamos que a pobreza e a precariedade têm um rosto de mulher”, diz esta socióloga de origem argentina. Na Espanha, apesar de a porcentagem de aposentadas ser maior, só um em cada dez altos executivos é mulher. Elas, além disso, continuam ganhando menos por um trabalho de mesmo valor. Uma diferença salarial de 19,3%. Ou, para sermos mais ilustrativos: para receber o mesmo salário, elas deveriam trabalhar 58 dias a mais por ano. Em alguns países da OCDE, essa diferença chega a 30%. No Brasil não é diferente. De acordo com o IBGE, as mulheres são a maioria entre os que ganham entre um e dois salários mínimos e vão perdendo espaço à medida que o rendimento aumenta. No topo da pirâmide, ou seja, 0,7% da população brasileira que ganha acima de 20 salários mínimos, as mulheres são 0,4% e os homens são 0,9%.
“Há certos avanços, aumentou o mal-estar em relação à desigualdade, e há mais consciência disso entre as jovens. Quando vejo as jovenzinhas bem resolvidas me sinto feliz, porque é um sinal de que estamos caminhando”, diz Morena Herrera. No entanto, acrescenta, há aspectos nos quais o retrocesso enfrentado pelas mulheres é oceânico. “Nos direitos sexuais e reprodutivos o recuo é enorme. Em El Salvador vemos também certos níveis de crueldade que interpreto como uma espécie de reação a todos os avanços das mulheres. Algo que se vê, por exemplo, no aumento da violência contra as mulheres ou na proibição total do aborto.”
Carlota Álvarez também fala de retrocesso. “Nós, com nossos companheiros que estão na luta, realmente avançamos muito. Mas deixamos certa parte da sociedade para trás. Deveríamos nos perguntar, por exemplo, o que está acontecendo para que 33% dos jovens de 16 anos justifiquem a violência de gênero, segundo mostram as pesquisas”, destaca esta estudante de História, que começou a militar nos movimentos feministas estudantis há pouco mais de três anos.
“Não conseguimos a liberdade das mulheres”, intervém Herrera. “Não é um valor democrático na sociedade salvadorenha. Uma liberdade que tem a ver com decidir sobre seu próprio corpo e sobre outras coisas. Um exemplo, a idade mínima para se casar continua sendo menor para as mulheres do que para os homens. A vida das mulheres, ainda que a lei diga o contrário, não é um bem jurídico a proteger. Vale pouco. Conseguimos que a lei reconheça que há feminicídios, mas ainda que exista a norma e tenha ganhado um nome, El Salvador é, ao lado de Honduras e Jamaica, o país com o índice mais alto de assassinatos de mulheres. E nada acontece.”
A violência sexista é um problema de primeira ordem em todo o mundo. Na Espanha, em 2014, 54 mulheres foram assassinadas por seus cônjuges ou ex-cônjuges. E este ano as vítimas fatais dos assassinos machistas rondam as cinquenta. É uma marca que não diminui, e que não está recebendo a atenção nem a resposta adequada por parte das instituições, concordam as quatro feministas. “Se em vez de mulheres fosse qualquer outro grupo, esses assassinatos teriam se tornado um problema político de verdade. Mas estamos diante de um assunto por resolver. E existe impunidade social a respeito”, diz Justa Moreno. “Não lhe é dada a importância política nem social nem a gravidade que deveria.”
“Em vez de impunidade, eu falaria em cumplicidade”, aponta Álvarez. “Há cumplicidade em relação aos comportamentos machistas, que são os que levam, em última análise, aos assassinatos. Que a sociedade afirme que é bom que seu namorado tenha ciúmes, porque se preocupa com você, e com quem você sai à noite, em como se veste, que amigos tem, coloca a mulher que rompe a relação e sai dessa dinâmica controladora como a exótica do grupo”, diz a estudante de História.
“Cumplicidade e impunidade não são contraditórias”, intervém Montero.
“Impunidade social e impunidade do Estado. E tolerância. Tolera-se a violência em relação às mulheres”, destaca Herrera. “Continua sendo natural estuprar, maltratar, insultar, bater. Inclusive há um nível importante de violência que as próprias mulheres toleram porque não estamos acostumadas a identificar como manifestações de violência. Isso também faz parte do desafio que enfrentamos: identificar as primeiras manifestações de violência para detê-la quando ainda é possível. Por exemplo, chamar de tonta, de inútil, o controle que agora se manifesta no controle dos telefones…”, acrescenta.
Elas falam de violências. No plural. “Não se pode esquecer o assédio às mulheres na rua, o assédio no trabalho, a violência sexual”, afirma Álvarez. “Não são só os assassinatos”, completa Cazzaniga. “Não só queremos ficar vivas, queremos ter uma vida digna, liberdade sexual, poder decidir sobre nosso corpo, nosso projeto de vida”, diz.
As estatísticas sobre violência de gênero tanto na Espanha como na América Latina —onde nem todos os países têm dados e alguns dos que têm os compilam de forma precária— mal demonstram uma melhora. E o problema, afirmam Herrera e Montero, é de base. “Esta violência está ligada a tudo aquilo que leva a justificar outras desigualdades, como a de negar a soberania e a liberdade do próprio corpo, o a de não entender o direito das mulheres a ter seu próprio projeto de vida, a desigualdade em termos salariais. Todas essas coisas dão a ideia de que umas valem menos do que outras. E isto vai gerando uma cultura que no fim banaliza as violências”, diz Montero, que critica duramente a falta de um currículo escolar com conteúdos transversais que inclua valores de cidadania e igualdade.
Na Espanha, menos de uma em cada três vítimas fatais da violência de gênero tinha denunciado seu agressor. Um dado que as Administrações sempre mencionam para estimular que se peça ajuda às instituições, mas que, para Álvarez, só criminaliza quem foi à polícia. “É como se ao denunciar se justificasse o que ocorreu. Também é uma forma de dizer: ‘Bem, quem poderia saber que iam assassiná-la’. Não entendem que há mulheres que não conseguem denunciar por vários motivos, mas que deveriam ter direito a dispor de recursos para sair dessa situação. Há um nível tremendo de insensibilidade”, afirma.
O direito ao aborto. Mas se a violência de gênero não consegue amarrar um grande pacto político para seu enfrentamento, e não costuma estar nos primeiros pontos da agenda política de uns e outros, o aborto costuma aparecer nos debates eleitorais de forma recorrente. E o direito de decidir livremente sobre a maternidade e a soberania quanto ao próprio corpo tem sido uma das lutas tradicionais do feminismo. No ano passado, milhares de mulheres — e também de homens — saíram às ruas em oposição à reforma da lei do aborto planejada pelo Executivo de Mariano Rajoy, que representava um grave retrocesso aos direitos das mulheres.
Montero ironiza as manifestações contra o anteprojeto de lei criado por Alberto Ruiz-Gallardón: “Eu me dizia: ‘Outra vez aqui, como há 30 anos, reclamando o direito ao aborto quando nossa vida reprodutiva está liquidada”. Quando Montero protestava nas ruas pela descriminalização do aborto, as mulheres interrompiam a gravidez na clandestinidade ou no exterior e suas vidas estavam em risco. Durante estes últimos anos, as mulheres saíram à rua contra a redução de suas opções para decidir.
“Quando se propõe a reforma, cai em cima de nós, jovens, como uma bomba, porque para nós é um direito que já está interiorizado”, diz a estudante de História. Álvarez nasceu quando o aborto já era legal na Espanha — foi descriminalizado em três casos em 1985 e em 2010 foi aprovada uma lei que permite à mulher decidir interromper sua gravidez até a 14a semana, sem ter de justificar sua decisão; a norma que o Governo pretendia modificar. A jovem afirma, no entanto, que houve um retrocesso: desde há algumas semanas todas as menores passaram a precisar do consentimento de seus pais ou tutores para abortar; antes apenas deviam informar sua decisão em casa, e podiam pular esse passo se contar representasse um conflito para elas. “E nossa responsabilidade como feministas é denunciar este retrocesso social.”
“Por trás de tudo isso, e do debate constante em torno do aborto, há uma tutelagem constante das mulheres. Como se não tivéssemos autoridade moral para decidir sobre nosso corpo e sobre nosso projeto de vida. Não só nossa vida vale menos, nossas decisões também valem menos”, diz Cazzaniga, que relembra que o aborto continua sendo um delito no Código Penal.
Mas essa luta pela soberania é importante, destaca Morena Herrera, a ex-guerrilheira, fundadora da Colectiva Feminista, que conta o caso da jovem Beatriz, uma camponesa quase sem estudos, doente e grávida de um feto anencefálico, que em 2013 colocou o sistema judicial de cabeça para baixo, assim como El Salvador e parte da América, por exigir um aborto em um país onde é totalmente proibido — como em outros países, como Chile, Nicarágua e Malta.
El Salvador persegue as mulheres e as criminaliza por interromper a gravidez. “Inclusive algumas que não necessariamente se submeteram a um aborto, mas que têm problemas no fim da gravidez ou do parto e chegam com hemorragia ao hospital, são denunciadas, presas e condenadas”, reforça Herrera. Hoje, há quinze mulheres nessa situação nos presídios salvadorenhos. Algumas delas, condenadas a penas de 30 anos de prisão. “Em meu país e desgraçadamente não é o único em que um embrião vale mais do que a vida de uma mulher.”
María R. Sahuquillo
No Brasil, foi o ano da primavera das mulheres
O ano de 2015 foi especial para o debate da questão feminista no Brasil. A pauta esteve presente em diversos momentos do ano e em diferentes lugares: ocupou o tema da redação do Enem, as redes sociais com campanhas como #PrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto, as colunas nos jornais no movimento #AgoraÉQueSãoElas, e, principalmente, as ruas, nas manifestações organizadas em diferentes cidades. As mulheres também foram às ruas contra o projeto de lei que complica o acesso legal ao aborto, de autoria do presidente da Câmra, Eduardo Cunha. Foram as maiores marchas feministas do Brasil em anos e as mulheres ocuparam as ruas e a agenda midiática.
Luíse Bello, responsável pelo conteúdo do Think Olga, um Think Tank que discute o feminismo e lançou campanhas como a Chega de Fiu Fiu (contra o assédio nas ruas) e #MeuPrimeiroAssédio (para expor o assédio sofrido por mulheres muitas vezes na infância e dentro de casa), diz que as pautas de hoje são as mesmas de ontem. “Talvez a diferença seja os meios de se manifestar”, diz. “Mas as questões são as mesmas: violência, desigualdade salarial, assédio…”
Beth Vargas, socióloga e militante do movimento feminista nas décadas de 70 e 80, concorda, e vê poucas mudanças positivas na vida das mulheres hoje, em relação à de algumas décadas. “Os casamentos e relacionamentos amorosos estão melhores hoje, de maneira geral”, diz ela, apontando para a liberdade feminina dentro das relações. “Mas, por outro lado, na nossa época os homens faziam parte dos movimentos feministas, estavam nas ruas. Hoje não. Quem apoia as feministas são os gays, porque também sofrem com a violência.”
A violência contra a mulher, inclusive, era um tema muito mais debatido, segundo Beth. “Debatíamos muito essa questão. Daí surgiram as delegacias da mulher, na década de 80”, diz. “Mas depois disso, essas delegacias não se proliferaram. Muito pelo contrário.”
No Brasil assim como em outros lugares do mundo, o caminho é longo. Há décadas o movimento feminista reivindica direitos muito parecidos. “Não é um novo feminismo”, diz Luíse. “As pautas são as mesmas. Só estamos trazendo o debate para a internet.”
(por Marina Rossi, de São Paulo)
Acesse no site de origem: Jovens e veteranas na luta global das mulheres por igualdade em 2016 (El País, 31/12/2015)