(El País, 04/07/2016) A melhor opção do Reino Unido para negociar com a UE depois do ‘Brexit’ está nas mãos de três políticas de destaque: May, Eagle e Sturgeon
“O patriotismo é o último refúgio de um canalha”
O Reino Unido não tem Governo, não tem partido de oposição, a cada dia surge um novo caso de assassinato político ou de vil traição, os cidadãos nunca estiveram tão divididos desde o fim da guerra civil inglesa em 1649, a libra esterlina despenca, os investimentos estão totalmente parados, tudo indica que o desemprego aumentará e que os pobres ficarão mais pobres.
Nada disso estaria ocorrendo e o país continuaria próspero e estável se um referendo sobre a permanência na União Europeia não tivesse sido convocado, ou se os ingleses não tivessem sucumbido à proposta de suicídio coletivo propagada pelos políticos da direita elitista que lideraram a campanha triunfal pela saída da Grã-Bretanha da UE.
Mas, como dizem os chineses, tempos de crise, tempos de oportunidade. Não de evitar o dano, mas pelo menos de limitá-lo. Chegou a hora de as mulheres assumirem o comando.
Felizmente, elas estão aí, prontas para entrar na batalha. Depois da carnificina shakespeariana da última semana na cúpula masculina do partido do governo conservador, a ministra do Interior, Theresa May, surge como favorita para substituir David Cameron e ser eleita por seus correligionários tories como primeira-ministra. A trabalhista Angela Eagle é hoje a parlamentar com mais probabilidade de substituir Jeremy Corbyn como líder da oposição, desde que este não continue insistindo em antepor seu narcisismo bonzinho ao bem de seu partido e de seu país, ambos submersos no caos.
A Escócia, cujos habitantes votaram a favor da permanência no referendo, já tem a sorte de ter como chefe de Governo Nicola Sturgeon, que, apesar de representar o independentista Partido Nacional Escocês, é considerada por uma grande porcentagem dos cidadãos de todo o reino como uma mulher íntegra e hábil.
O público sabe pouco de May e de Eagle, mas ninguém lhes acusou até agora de incompetência, falsidade ou cinismo, diferentemente dos homens com os quais concorre para chegar ao topo de seus respectivos partidos.
Eagle tem 55 anos, 24 dos quais atuou como deputada trabalhista no Parlamento britânico. Foi ministra da Previdência Social no Governo do primeiro-ministro Gordon Brown. Quando Eagle anunciou —em resposta à lamentável inutilidade de Corbyn na campanha em favor da permanência na UE— que se unia aos 170 deputados trabalhistas que exigiam a demissão do líder, o fez entre lágrimas. Deve ter sua cota de ambição pessoal, mas agiu conforme a percepção consensual no mundo político britânico de que o trabalhismo não tem nenhuma possibilidade de chegar ao poder nem de montar uma oposição minimamente eficaz aos conservadores enquanto Corbyn continuar onde está.
May, de 59 anos, era favorável à permanência na campanha do referendo, assim como Eagle e três quartos dos deputados parlamentares britânicos. Trabalhou durante 12 anos no Banco da Inglaterra, está há quase 20 na política e é ministra do Interior desde 2010. Segundo inclusive os que não votaram nela no Partido Conservador é uma pessoa confiável, sagaz e prudente, da qual nunca se disse que possui tendências messiânicas ou uma ambição louca pelo poder.
Não se pode dizer o mesmo de seu principal rival para liderar o Governo, Michael Gove. Atual ministro da Justiça, Gove permitiu comparações na imprensa esta semana com o maquiavélico presidente da série norte-americana House of Cardse com o regicida Macbeth. Descrito por um antigo assessor de Margaret Thatcher como “um hamster anabolizado”, Gove traiu primeiro seu antes amigo íntimo David Cameron quando se declarou a favor do Brexit; e traiu de forma ainda mais escandalosa Boris Johnson, o carismático ex-prefeito de Londres com quem tinha tido uma amizade de 30 anos.
Poucos dirão que Johnson não merecia, tendo ele também traído Cameron quando, depois de um longo período de dúvida, optou, estimulado pelo próprio Gove, a ser líder do movimento para o Brexit. Era um segredo declarado que Johnson tomou essa decisão depois de calcular que lhe daria a melhor oportunidade, ganhasse quem ganhasse o referendo, de conquistar seu sonho de seguir os passos de seu herói Winston Churchill e ocupar a 10 Downing Street. Gove, que sem dúvida foi contra o processo de paz na Irlanda do Norte e a favor da guerra no Iraque, não só apoiou-o publicamente como disse que seria seu chefe de campanha no Partido Conservador.
“Amo meu país”
Mas Gove, que tinha dito em muitas ocasiões que jamais contemplaria a possibilidade de ser primeiro-ministro, anunciou na quinta-feira, dia 30 de junho, horas antes que Johnson tivesse planejado anunciar sua candidatura oficialmente, que tinha mudado de opinião. Johnson, Gove acabava de descobrir 30 anos depois, carecia das condições para ser chefe de Governo e não via outro remédio além de se candidatar ele mesmo a futuro primeiro-ministro. Johnson, entendendo que há não teria votos suficientes para vencer as eleições internas de seu partido, decidiu renunciar à grande ambição de sua vida.
Em uma entrevista no domingo, dia 3 de julho, à BBC, quando foi acusado por um entrevistador de traição e deslealdade, Gove explicou, em tom solene e reverente, que a decisão tinha sido dolorida: “Mas o fiz por meu país e por meus princípios em favor do interesse nacional”. “Amo meu país”, acrescentou, apesar de ter lhe sido difícil explicar que planos tinha para os que traiu de forma até mais frívola e irresponsável: os trabalhadores de baixa renda ou de situação trabalhista precária que convenceu a votar no referendo pela saída da UE quando, como já se vê, são eles que sofrerão as consequências deste disparate colossal, e não Gove. Nem Johnson, cuja nova missão na vida será vingar-se de Gove, tentando destruir sua carreira política de volta.
Enquanto os meninos se devoram entre si, Theresa May colhe votos entre os deputados conservadores, exercendo o papel de matriarca sensata. Se o Partido Conservador resistir à tentação à qual sucumbiu o eleitorado inglês de confiar nos princípios propostos por Gove, e o trabalhista a de continuar pelo caminho da autodestruição ao insistir em Corbyn à frente, May e Angela Eagle oferecerão ao Reino Unido a melhor possibilidade à vista de salvar pelo menos alguma coisa nas duras negociações que são esperadas deles com os chefes da União Europeia.
A testosterona não serviu bem aos britânicos. As mulheres costumam ser menos fanáticas que os homens, mais práticas e mais responsáveis. May, Eagle e também Sturgeon não parecem estar entre as exceções à regra. Com sorte para seu país, caberá a elas consertar a bagunça monumental deixada por eles.
John Carlin
Acesse no site de origem: A hora das mulheres do Reino Unido, por Samuel Johnson (El País, 04/07/2016)