Um dos assuntos mais recorrentes para diferenciar as propostas dos candidatos diz respeito à mobilidade urbana. Dentre tantas estatísticas, opiniões e críticas, nos perdemos no meio de uma argumentação pautada na necessidade de deslocamento rápido, onde o espaço público exerce mera função de passagem. Vivemos em cidades construídas para o carro.
(HuffPost Brasil, 03/10/2016 – acesse no site de origem)
Os mais vanguardistas importam do dinamarquês Jan Gehl o conceito de espaço público que, de tão genérico, é impossível questionar: “Cities for people”. Gehl propõe um urbanismo lento, não pautado no deslocamento automobilístico, mas no aproveitamento do espaço urbano como troca e interação social, como um espaço mais humano, verde e calmo e menos metálico, poluído e barulhento.
Na minha tradução livre para as terras tupiniquins, traduzo o conceito para “Cidades para mulheres”. O que escrevo aqui é quase um apelo para a inserção das mulheres como voz entoadora das políticas de espaço público e mobilidade urbana.
*O que é ser uma mulher nas ruas de uma cidade? Para entender, basta subir em uma bicicleta e começar a pedalar: a partir daí a experiência de constante apreensão e vulnerabilidade às pessoas a sua volta tomará conta de todos os músculos contraídos do seu corpo. As entranhas se reviram e os sobressaltos são ininterruptos.
Grande parte das cidades brasileiras foi construída pela lógica do automóvel. Isso significa também dizer que foram construídas pela perspectiva masculina, onde o carro exerce posição de destaque: símbolo de virilidade, autonomia, liberdade, status e maturidade, seria difícil conceber uma máquina capaz de tantas representações se ela já não existisse sob a lataria de um automóvel.
A lógica do carro também segue a lógica da exclusão: parte-se do pressuposto de que nem todos podem ter acesso a ele para que se mantenha como um privilégio sobre os outros modais. Além do mais, ganha o significado de artigo de luxo quando mostra-se como um bem para ser admirado e desejado: o homem traveste-se de carro e por ele é definido.
Por fim, a lógica do automóvel segue a lógica do individualismo: os outros motoristas, pedestres, ciclistas e usuários de transporte público aparacerem meramente como obstáculos ao nosso próprio direito inalienável de movimento. O meio urbano se transforma em um campo de batalha, onde o vencedor ganha pela lei do mais forte: o homem rico no transporte motorizado e individual.
Por ele a cidade é planejada e a ele a cidade serve.
Em contrapartida, dentre tantas consequências do modelo rodoviarista adotado, curiosamente insiste-se em chamar de “acidente” o efeito indesejado da lógica em questão. Não por acidente ou acaso, 30% das mortes de homens no Brasil se dá nas ruas. Perde-se mais de 42 mil vidas a cada ano no trânsito, sendo que aproximadamente 80% das vítimas são homens, segundo o Ministério da Saúde. Apenas 5% das mortes são causadas por mulheres.
Por ele a cidade é planejada e ele por ela é morto.
*Montado na bicicleta, se um carro te atingir, você provavelmente será o culpado. Ao final do seu depoimento, a polícia vai presumir que você estava pedalando sem segurança, e dizer o que deveria ter feito para se proteger melhor. O motorista provavelmente não será punido. Ou no máximo uma punição leve, mas provavelmente menor que o dano sofrido por você.
O desenvolvimento das cidades rodoviaristas foi pensado a partir do deslocamento casa-trabalho, um binômio que gira em torno do cotidiano majoritariamente masculino. Por décadas, planejadores urbanos trataram em segundo plano trajetos menores como a ida ao supermercado, à escola, à feira: trajetos estes historicamente referentes ao cotidiano feminino.
Com a inserção da mulher no mercado de trabalho nos anos 70, o pêndulo casa-trabalho e trabalho-casa tornou-se muito mais complexo e de difícil mapeamento. Isso porque a divisão de tarefas domésticas na dinâmica familiar não seguiu a mesma rapidez de mudança que as relações de trabalho: quase 50 anos depois, mulheres ainda concentram jornadas duplas ou triplas sendo ao mesmo tempo provedoras de renda, donas de casa e mães.
Levando em consideração que histórica e culturalmente o carro é propriedade do homem numa família heteronormativa, pensar uma cidade voltada para pedestres e bicicletas é, portanto, pensar uma cidade que inclua a parcela mais frágil da população.
Não por acaso, nos países onde os aspectos culturais machistas são mais gritantes, é negado o direito da mulher de aprender a dirigir ou andar de bicicleta. O transporte está intimamente relacionado com o direito masculino à cidade e a privação e histórica feminina ao espaço público. Não por acaso também Susan Anthony (1820-1906) já dizia que a bicicleta fez muito mais pela emancipação feminina que qualquer outra coisa no mundo. Dentre elas, as mudanças mais drásticas no vestuário, como a aparição das calças bloomer para substituir as antigas saias longas ao pedalar.
*Você deveria ter sido mais cuidadoso. Você deveria ver onde estava indo. Se você tivesse ao menos ficado em um lugar adequado, isso não teria acontecido. É possível tentar argumentar, mas provavelmente será desconsiderado. Depois de um tempo você aprende apenas a lidar com essa agressividade constante, com essa posição passiva na cidade, até porque listar esses pequenos aborrecimentos gera ainda mais aborrecimento. Bater no retrovisor de um carro como ato impensado vira um atentado à propriedade privada, um insulto sem igual. Pela fragilidade do espaço que você, ciclista, ocupa na rua com a sua bicicleta, é melhor ficar calado e não retrucar aos ataques que sofrer.
Em metrópoles como São Paulo, costuma-se ouvir que o crescimento urbano se deu de forma desordenada. Ledo engano: se alguma coisa regeu o avanço urbano e a situação caótica atual, essa coisa foi planejamento. Um planejamento pautado em interesses privados das indústrias aliados a uma forma rodoviarista e excludente de mobilidade.
Se tanto o espaço privado quanto o espaço público (neste segundo inclusos os espaços de estadia e de passagem) são historicamente propriedade do homem branco empresário e gestor, devemos parar de acreditar que serão eles os responsáveis pelas mudanças necessárias para uma cidade mais democrática. Se quisermos verdadeiramente importar o conceito de uma cidade mais humana, devemos, independente do candidato ou candidata eleito ou eleita, cobrar participação das mulheres nas políticas públicas urbanas em cargos de liderança.
Não podemos esperar deles uma mudança na lógica que os beneficia. Não podemos esperar deles que entendam o quão assustador é andar pela cidade sozinha. Não podemos esperar deles que instalem estações bicicletas compartilhadas não só nos bairros abastados com possíveis clientes com contas bancárias gordas, mas na periferia, para as mulheres que precisam percorrer os últimos 15 minutos de caminhada tarde da noite e o fazem com completo pavor. Não podemos esperar deles que entendam o terror que é tomar um táxi ou Uber com um motorista homem ao volante. Tampouco que a porcentagem de mulheres ciclistas que se sentem seguras para usar vias compartilhadas é muito menor que a porcentagem de homens ciclistas. Não participamos da discussão sobre a tal “indústria da multa” se nem carro temos. Não poderemos impor nossas prioridades no trânsito enquanto apenas 21% dos 132 cargos de chefia da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) forem mulheres. Isso só para citar algumas das questões referentes ao carro e a mobilidade urbana. Isso sem falar de todos os outros tópicos.
Não podemos esperar deles soluções para assuntos que eles não entendem a urgência. Mais do que tentar explicar para alguém que nunca entenderá a opressão que vivemos, é necessário que nós mesmas nos façamos representadas nas decisões da cidade. Seja por uma prefeita mulher, uma vereadora mulher, uma secretária mulher ou metade da participação em conselhos municipais dedicada à mulheres.
Não nos contentemos com o histórico papel de primeira-dama do prefeito da cidade que se dedica às questões sociais, cuidando de cachorros abandonados, velhinhos e crianças órfãs. Procuremos mostrar que somos mais do que o papel maternal que nos foi dado e que vivemos a cidade de igual para igual.
Se ser mulher em São Paulo se tornou um desafio entre a vida e a morte, sejamos nós as porta-vozes das nossas próprias pautas, de forma a propor soluções e reivindicar a cidade segura que desejamos.
*No final do dia, ao descer da bicicleta, você pode enfim respirar aliviado e declarar que ainda não temos cidades preparadas para acolher os ciclistas e pedestres. Por esse motivo, amanhã você preferirá voltar ao seu habitual meio de locomoção, no qual se sente menos vulnerável às pessoas à sua volta.
E se você acordasse todos os dias sem poder optar?
*O texto em itálico é uma adaptação do texto originalmente em inglês Ride like a Girl.