Esforço das marcas em proporcionar uma experiência diferenciada aos seus clientes fortalece duas grandes tendências globais de consumo: a reinvenção dos gêneros e o multiculturalismo
(Meio&Mensagem, 08/05/2017 -Acesse no site de origem)
Depois de uma década de crescimento do PIB brasileiro, aumento da renda disponível para a população – especialmente da classe média – e incorporação dos mais diversos produtos e marcas em suas cestas de compra, muitos consumidores estão sendo obrigados a repensar seus padrões de compra. Com um cenário econômico desfavorável e perda do poder aquisitivo real, as decisões passam a ser feitas de maneira mais racional, levando-se em consideração aspectos como orçamento disponível, real necessidade do item e a percepção de valor do produto em questão. Com tantas marcas no mercado disputando um espaço valioso no carrinho de compras dos brasileiros, fica cada vez mais claro quem é que dá as cartas a partir de agora: temos um consumidor empoderado, mais crítico, que exige mais das marcas que consome e, acima de tudo, que quer ser mais ouvido e mais respeitado.
Se essa é a nova realidade para grande parte das categorias de bens de consumo no Brasil, o mercado de cervejas não poderia ficar de fora. Ao longo dos últimos 10 anos, o brasileiro conheceu e experimentou diversas marcas com posicionamento diferenciado em relação às marcas mais tradicionais. O segmento de cervejas premium, constituído por marcas como Heineken, Budweiser, Stella Artois e muitas outras, representava em 2007 cerca de 7% do volume total de cerveja no Brasil. Em 2016, essa proporção subiu para 11% e, ao contrário do que se imagina em um cenário de retração econômica, as vendas se mostram resilientes e continuam a crescer. No ano passado, as vendas de cerveja premium cresceram 1% em volume, frente a uma queda de 4% do mercado total. Os consumidores buscam, cada vez mais, incluir estas marcas em seus carrinhos de compra, mesmo que isso os obrigue a diminuir, em partes, a frequência de consumo do produto. Trata-se de um dos efeitos de um movimento global de “beber menos, mas beber melhor”.
Mais do que apenas consumir uma cerveja, a escolha da marca envolve os valores dela, a percepção que os outros possuem dela e a mensagem quer elas querem passar. As marcas premium têm desencadeado uma revolução no que se refere à comunicação com seus consumidores, especialmente por focarem seus esforços nos millennials – a mais nova geração de bebedores legais no País. O esforço de muitas destas marcas premium em proporcionar uma experiência diferenciada aos seus clientes fortalece duas grandes tendências globais de consumo: a reinvenção dos gêneros e o multiculturalismo.
Reinvenção dos gêneros: ascensão da mulher consumidora
Historicamente, o consumo de cervejas no Brasil foi alavancado quase que em sua totalidade por homens. Consequentemente, as campanhas publicitárias destas marcas focavam seus esforços em atrair e conversar apenas com estes consumidores, muitas vezes colocando as mulheres em papéis de subserviência e objetificação: seja servindo o produto em trajes diminutos, como “vitrines” das marcas ou como troféus simbolizando o prêmio a ser conquistado por quem bebe daquela marca. Ao longo dos anos, no entanto, a mulher passa a ganhar maior importância no mercado de cervejas, começa a consumir e entender muito sobre o produto e, em muitos lares do País, passa a ser a decisora final sobre as compras da família. Neste sentido, é fundamental reconhecer sua relevância e apresentá-la nas comunicações como consumidora ou, pelo menos, tirá-la da posição de objeto ocupada até então.
Algumas marcas iniciaram processos de mudança significativos neste aspecto. A cerveja Itaipava, tradicionalmente conhecida por comerciais onde apresentava a modelo Aline Riscado usando biquíni ao servir a cerveja, tem trazido uma abordagem diferente focando nos atributos da própria cerveja. O copo, a garrafa e a lata passam a ocupar o centro da comunicação tirando o foco do corpo da mulher. Foca-se mais na experiência de consumo e nas “histórias de verão”, um dos motes da nova campanha. A Skol, da mesma forma, passa a protagonizar ações específicas em favor da liberdade e do respeito à mulher.
Como exemplos, a marca fez uma distribuição de apitos nos blocos de carnaval de rua para que as mulheres sinalizassem qualquer sinal de desrespeito ou assédio. Além disso, promoveu a recriação de seus antigos pôsteres que traziam a mulher seminua por outros desenvolvidos por ilustradoras reforçando o empoderamento feminino. A marca foi mais além ao assumir, publicamente, que as antigas imagens “não a representam mais”, especialmente após o impacto negativo de sua campanha “Esqueci o ‘não’ em casa”, no Carnaval de 2015.
É importante ressaltar a relevância de ações de comunicação que colocam a mulher como uma consumidora e não como um objeto. Mas, mais do que isso, é fundamental que as marcas deixem de segregar os produtos de acordo com o gênero do consumidor, uma movimentação alinhada com a tendência de gender blurring que rejeita os estereótipos do que foi feito “para mulher” ou “para homem”. Um dos mais emblemáticos casos no segmento de cervejas foi o lançamento, este ano, da cerveja Proibida Rosa Vermelha Mulher, posicionada como “delicada, perfumada e feita especialmente para a mulher”. O lançamento não só segrega o consumo das mulheres como pressupõe suas preferências. A repercussão nas redes sociais foi bastante negativa e várias mulheres fizeram questão de se posicionar sobre o lançamento e sobre suas preferências de consumo de cerveja – pouco ou nada diferentes das dos homens. É certamente válido para uma marca complementar seu portfolio com diversos tipos da bebida, das mais robustas às mais leves. Mas não se deve atribuir a um gênero específico a preferência por quaisquer das variações.
Multiculturalismo: valorização do “eu”
Além da questão de reinvenção dos gêneros, outra importante tendência que se pode esperar para os próximos anos nas comunicações de cerveja refere-se ao multiculturalismo. O movimento está amplamente relacionado com os movimentos migratórios que, especialmente no caso do Brasil, desde sempre contribuíram para a miscigenação da população. De maneira mais ampla, promove-se a valorização do “eu”, tanto interna quanto externamente. Por ser um produto amplamente consumido nas épocas mais quentes do ano, a grande maioria dos comerciais de cerveja mostra ocasiões como praias, festas na piscina, festas ao ar livre. A questão é que uma grande parte das personagens mostradas nas comunicações atendiam a alguns estereótipos específicos: magros (as), malhados (as), bronzeados (as), extrovertidos (as), etc. focando bastante em atributos mais aspiracionais (ou seja, em como os consumidores gostariam de ser). De maneira oposta, os consumidores atuais querem cada vez mais se ver representados com autenticidade nos comerciais de cerveja, independentemente de seu tipo físico. O destaque fica para a campanha de 2017 da Skol, “Redondo é sair do seu quadrado”, apresentando consumidores dos mais diversos tipos físicos e encorajando todos a aproveitarem o verão sem vergonha. Outra campanha, também da marca, traz a valorização da etnia dos consumidores. Foi lançada uma edição especial das latas da bebida pintada com os mais diversos tons de pele. A ideia é que, cada vez mais, todos os consumidores se vejam representados nas campanhas da marca.
Existem, ainda, longos caminhos a serem percorridos pelas marcas em termos de garantir a representatividade adequada de todos os seus consumidores. Questões como empoderamento feminino, igualdade de gênero, respeito às etnias, multiculturalismo, preconceito, entre muitas outras, ainda podem ser amplamente discutidas nas campanhas dos mais diversos bens de consumo e, inclusive, das cervejas. Mas é importante observar como algumas iniciativas começam a surgir e dar mais voz e mais espaço aos consumidores. Se tratam-se apenas de “jogadas de marketing”, se tem por objetivo simplesmente conter o avanço das marcas competidoras ou se realmente são preocupações genuínas, é difícil dizer. É inegável, no entanto, especialmente no caso das cervejas, que a crescente conscientização dos consumidores brasileiros a respeito de seus direitos e deveres, somada a uma maior concorrência com marcas que tem uma abordagem de comunicação diferente, abriram caminho para uma mudança positiva e irreversível.
Uma vez que se sintam representados e considerados de maneira adequada nas campanhas de comunicação, dificilmente os consumidores aceitarão menos que isso das marcas que escolherem para consumir. É assim que se constrói uma verdadeira relação de valor e de lealdade com os consumidores. E é assim, também, que uma marca se torna mais resiliente a quaisquer possíveis crises que o mercado possa enfrentar.
Angélica Salado
Analista de pesquisa da Euromonitor International