Mulheres negras venceram a escravidão, mas ainda enfrentam violações de direitos fundamentais.
Neste Dia de Tereza de Benguela e das Mulheres Negras Afrolatinoamericanas e Caribenhas, mulheres negras e indígenas tomarão as ruas em atividades na Central do Brasil (Rio de Janeiro), no Iguatemi (Salvador), em Campinas e na capital paulista. Em São Paulo, o ato “Por nós, por todas nós, pelo Bem Viver” reafirma que somos fortalezas.
Não a “força” exigida pela sociedade racista patriarcal e heteronormativa para que suportemos todas as violências que nos impõem, mas a força de uma história que esta mesma sociedade tenta esconder e contra a qual vamos gritar cada vez mais alto. A fortaleza e a potência de saber que este país deve a nós ter chegado ao posto de sétima economia do mundo. E deve muito.
(HuffPost Brasil, 25/07/2017 – Acesse no site de origem)
O 25 de julho é celebrado desde 1992 por deliberação do 1º Encontro de Mulheres Afrolatinoamericanas e Afrocaribenhas. No Brasil, em 2014, a data foi instituída por lei também como o Dia Nacional de Tereza de Benguela – primeira liderança feminina quilombola reconhecida pelo Estado brasileiro.
Os registros históricos mostram que Tereza comandou o Quilombo do Quariterê, região do Mato Grosso, por quase 40 anos, até 1770. Naquele pedaço de terra, uma experiência de relações sociais oposta pelo vértice ao regime escravista, que possibilitava a convivência entre negros, indígenas e bolivianos e produção coletivizada. Tudo isso fez Tereza ser reconhecida como rainha de um reinado que nada tem a ver com o mofo despótico monarquista de inspiração europeia.
Hoje é, portanto, um dia para celebrar as vitórias e conquistas políticas das 49 milhões de mulheres negras do Brasil. Em país em que mais da metade do povo se declara preto ou pardo, ainda estamos sobrerrepresentadas em todos os indicadores de violações de direitos em decorrência do racismo patriarcal que estrutura a sociedade.
Por isso, neste artigo não centrarei esforços em destacar os indicadores sociais costumeiramente divulgados sempre nesta data e no 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra.
Esses indicadores são fundamentais para corroborar a luta que travamos todos os dias do ano desde que chegaram nossas primeiras ancestrais sequestradas do continente africano para a escravização no País.
É fundamental reforçar com dados o quanto o racismo e o machismo demarcam um lugar de classe que pretende perpetuar uma condição subalternizada e despossuída para nós, negras. É desta forma que a sociedade se vê obrigada a reconhecer seu lugar de algoz evidenciado nos dados sobre os quais apenas muito recentemente forçamos o Estado brasileiro a se debruçar.
No entanto, quando a mídia foca apenas esses números negativos – e faz isso somente nas datas comemorativas – também reforça uma ideologia de “destino imutável”. E nossa história de mudança de condições de vida só se dá pela organização, luta e rupturas sociais. Só assim avançamos. E nunca nos recusamos a assumir a vanguarda na transformação das condições de vida de nosso povo. Nós a reivindicamos!
Nós, mulheres negras, resistimos à escravidão liderando quilombos – como fizeram Tereza, Aqualtune e Dandara em Palmares, Preta Zeferina no Quilombo do Urubu (BA), Felipa Aranha no Grão Pará (atual Tocantins), ou Luisa Mahin, que teve papel destacado na construção da Revolta dos Malês.
Quando os movimentos feministas europeus e norte-americanos buscavam o direito ao trabalho, ao voto e ao aborto para mulheres brancas de quem o capitalismo tinha retirado a autonomia e destinado o espaço do privado, nós, mulheres negras, já éramos parte fundamental da força de trabalho.
Violentadas de todas as formas, também lutamos – muitas vezes contra nossas irmãs brancas – pelo direito ao sufrágio. Já abortávamos para que filhos gerados pelos estupros praticados por escravocratas não sofressem as misérias que nos eram impostas. Para nós, a luta pela legalização do aborto foi sempre um ato político de resistência a um sistema opressor e explorador, e não só uma questão de escolha.
Para nós, o direito ao nosso corpo é muito mais que uma palavra de ordem de contornos liberais. É uma resposta integral a todas as violações que sempre foram impostas a nós pelo Estado, pela violência da escravidão, pela violência do roubo e venda de nossos filhos pelos “senhores”, pela esterilização forçada em massa durante a ditadura empresarial-militar, pela violência obstétrica que mata milhares de mulheres todos os anos, pelo genocídio de nossos filhos.
Queremos o direito de optar conscientemente e com condições dignas por não exercer a maternidade quando não for uma possibilidade ou escolha, mas queremos mais: ter assegurados nossos direitos sexuais e reprodutivos, para que não tenhamos nosso direito de ser mães, se assim optarmos, roubado pelas condições de vida que nos são impostas. Não queremos morrer no parto e nem que nossos filhos sejam mortos pelo Estado.
Arrebentamos os grilhões. Contribuímos para derrotar as ditaduras no Brasil. Nos constituímos como feministas negras na luta contra o regime dos quartéis na década de 1970 – enfrentando o machismo dentro do próprio movimento negro, o racismo no movimento feminista e o capitalismo.
Enfrentamos uma sociedade que coloca para nós uma condição existencial que, do ponto de vista das relações de gênero, é agravada pelo racismo e determinante para a posição de classe que ocupamos.
Como ressaltou Lélia González, baluarte da nossa luta, “a gente também pode apontar para o lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como os diferentes modos de rejeição/integração de seu papel”.
Se existem, no SUS, as políticas de saúde da população negra, se há as leis que obrigam as escolas a ensinarem a importância da contribuição negra e dos povos indígenas para a história e o desenvolvimento do Brasil, se as trabalhadoras domésticas conquistaram os direitos previstos na CLT, se as universidades e concursos públicos no País reservam cotas para reparar parte dos crimes do Estado contra a população negra, tudo foi produto de muita luta, suor, lágrimas, sangue e vitórias.
Não somos coitadinhas. Somos o alvo deste Estado racista, machista e violento. Mas somos guerreiras e seguiremos marchando até que nenhuma de nós seja superexplorada, discriminada e violentada. Assim como levamos 50 mil mulheres a Brasília em 2015, vamos ocupar todos os espaços que por direito são nossos. Nossos passos vêm de longe e vão nos levar muito além! Até o Bem Viver!