Em entrevista, professora da UFF Hildete Pereira de Melo contextualiza baixa representação de mulheres em cargos públicos no país
(Nexo, 04/04/2018 – acesse no site de origem)
O Brasil ocupa a 161ª posição entre 186 países que foram considerados pelo ranking de Presença Feminina no Poder Executivo de 2018.
Divulgada no final de março, a lista é elaborada pelo Projeto Mulheres Inspiradoras (PMI) e se baseia em dados das Nações Unidas, do Banco Mundial, do instituto de pesquisas The Heritage Foundation e coleta ainda dados oficiais específicos dos países participantes.
A classificação do país em 2018 é a pior da América Latina. Na região, considerando também o Caribe, apenas o Haiti fica atrás do Brasil, que despencou 46 posições em comparação com o ano anterior.
O projeto também faz estimativas de quanto tempo levaria, considerando o ritmo de crescimento da participação nos pleitos e cargos, para se atingir paridade entre mulheres e homens nas prefeituras e governos estaduais.
A igualdade de gênero na titularidade das prefeituras, segundo o PMI, só chegará em 20 anos e meio. Já para que as mulheres atinjam a ocupação de metade das cadeiras para governador, são necessários 47 anos e 9 meses.
Mesmo nos dez países melhor classificados no ranking, a média de mulheres em ministérios é de 28,5%. A proporção ainda está distante de representar o percentual de mulheres na população mundial, que é de pouco menos da metade do total. Há, no mundo, 101,8 homens para cada 100 mulheres, de acordo com as Nações Unidas.
Como o cálculo é feito
A “pontuação” de cada país no ranking é sintetizada por uma série de índices que têm pesos diferentes: a representatividade feminina nas chefias de governo, nas chefias de Estado, o número e a proporção de habitantes governados por mulheres e de cargos em ministérios ocupados por elas.
No caso do Brasil, as informações locais utilizadas foram dados primários e públicos do Tribunal Superior Eleitoral, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Sead).
‘Uma mulher a mais, um homem a menos’
Lançado em março de 2018 pela editora FGV, o livro “Mulheres e poder – Histórias, ideias e indicadores”, das pesquisadoras Hildete Pereira de Melo e Débora Thomé, busca respostas para “onde se encontram as brechas de gênero que mantêm as mulheres longe das esferas de poder”.
Em entrevista ao Nexo, a autora e professora da Universidade Federal Fluminense, Hildete Pereira de Melo, tratou em alguns pontos, resumidos abaixo, das raízes da escassez de mulheres na política brasileira.
“Ao longo do século 20, em que a população mundial ampliou os direitos humanos e sociais, nós conquistamos direitos. O problema é que o poder vai muito além. Talvez o movimento feminista tenha pensado sempre que o poder era a obtenção de reais direitos, e que, com isso, as mulheres poderiam ter acesso ao poder decisório.
No caso brasileiro, emblemático porque somos a pior representação política da América Latina, percebe-se que isso foi uma ilusão. O poder decisório se mantém, de maneira extremamente inflexível, colocando todas as pedras possíveis no caminho da ampliação do acesso [das mulheres].
Os direitos que obtivemos, que nos conduziriam ao poder, são leis que não são necessariamente aplicadas. Só depois de mais de 40 anos de República a gente conseguiu votar e ser votada. Se uma mulher ocupa um cargo de poder, um homem está fora. A política é um espaço em que, quando um homem perde um pouco do seu quinhão no peso dessa balança de poder de decisão, é uma perda inestimável para eles. Para nós, nesse momento, é fundamental conseguir redistribuir esse poder.”
Raízes históricas
“As raízes das dificuldades das mulheres em ‘arrombar essas portas’ das esferas de poder são explicadas pela própria história do Brasil. A construção da nossa sociedade, e você pode pensar na nossa raiz ibérica, portuguesa, foi feita com um alijamento pesado das mulheres [na política]. Há toda uma desqualificação das mulheres que estão no poder, que o ambicionam e ambicionaram.
É um paradoxo. O Brasil esteve entre os primeiros 30 países em que as mulheres conquistaram o direito ao voto, em 1932. O primeiro foi a Nova Zelândia em 1893. As mulheres se candidataram, algumas foram eleitas, mas foram muito poucas. Vivemos o tempo todo junto dessa porta, e ela nunca foi aberta para as mulheres. [No ranking do PMI, a Nova Zelândia ocupa atualmente a primeira posição].”
Lei de Cotas falhou
“Eu, que estava nessa briga, olhando para trás vejo que fomos enganadas, entramos na conversa. Para se eleger, é preciso ter a legenda de um partido. Não pensamos que o direito de se candidatar poderia ser uma cortina de fumaça para não dar o poder [às mulheres] e foi o que aconteceu.
A Lei de Cotas, admitindo apenas a candidatura e não, na lista de eleitos [por cada partido], um lugar claro para as mulheres, foi um erro, uma estratégia. Um partido cujo número de votos elegesse dois candidatos, se tivesse cotas, poderia estabelecer que fosse um homem e uma mulher, por exemplo.
Nós, mulheres da minha geração que participaram da construção da lei nos anos 1990, como a Marta Suplicy, que era deputada [pelo PT], estávamos tão distantes do aspecto rasteiro na política, que não percebemos, nos iludimos com a proposta. E estamos pagando o preço. Tínhamos que ter nos contentado não apenas em ser candidatas. O partido coloca [a candidatura feminina], mas não dá recurso.”
Como aumentar a representação
“Seria necessária uma reforma política [para as mulheres alcançarem participação duradoura nos cargos eletivos]. Esbarra em mil dificuldades, começa toda uma discussão sobre o processo político, a organização do espaço político nacional. As mulheres têm que ir para a rua e não se contentar mais com migalhas de poder, colocar a paridade política.
Com isso, o poder em outros âmbitos, nas empresas, vem no rastro. À medida em que se tem mais parlamentares, empresas vão passar a olhar mulheres de forma diferente. As mulheres ainda estão completamente isoladas da atividade política e da riqueza.
A Marielle [Franco] foi, para mim, uma das grandes revelações da campanha de 2016. Ela era ‘a’ revelação da política, a maior revelação do mundo. Nesse quadro de ação política, de participar e negociar, uma mulher negra, de 38 anos, que se destaca na política dessa forma, não ‘podia’ ficar viva.”
Juliana Domingos de Lima