Interferência de bancada conservadora em campanhas de saúde pública deve crescer
(Folha de S.Paulo, 01/01/2019 – acesse no site de origem)
É preocupante a fala do novo ministro da Saúde na gestão de Jair Bolsonaro, o médico Luiz Henrique Mandetta, de que o Estado tem que tomar cuidado para não ofender as famílias com campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids.
Mandetta não deixa claro que tipo de abordagem caracterizaria uma “ofensa às famílias”, muito menos a que modelo familiar ele se refere. Mas a história tem mostrado que quando falsos moralismos se sobrepõem às evidências científicas há impactos muito negativos nas políticas de saúde.
Não é de hoje que a bancada conservadora do Congresso interfere diretamente em campanhas públicas de saúde, especialmente nas que dizem respeito às infecções sexualmente transmissíveis. Foi por pressão dela que o Ministério da Saúde, no período que antecedeu ao Carnaval de 2012, suspendeu a exibição de propaganda com foco na prevenção do HIV em jovens gays.
Em março de 2013, também mandou recolher um material de prevenção das DSTs/Aids dirigido a adolescentes, que abordava temas como a homossexualidade, drogas e gravidez. Ainda houve vetos em campanha voltada para as prostitutas, grupo que representa entre 10% e 15% das mulheres infectadas pelo HIV no país.
Nos últimos anos, também por pressão dos conservadores, reinou no ambiente escolar um silêncio sobre sexualidade, riscos, questões de gênero e preconceito. Tudo isso sob o manto das administrações petistas.
Bolsonaro já disse, por exemplo, ser contra a abordagem da sexualidade nas instituições de ensino. “Quem ensina sexo para a criança é o papai e a mamãe. Escola é lugar de aprender física, matemática, química”, afirmou em novembro.
Para pesquisadores, a interferência conservadora pode ser uma das causas do aumento da taxa de transmissão do HIV entre meninos de 15 a 19 anos. Entre 2006 e 2015, ela triplicou nessa faixa etária, segundo estudo encomendado pelo Ministério da Saúde, divulgado em maio. Entre jovens de 20 a 24 anos, duplicou. São Paulo é a cidade com maior prevalência do vírus, com 24.8%.
“O crescimento do apoio da bancada ‘boi, bala e bíblia’ em um Congresso considerado o mais conservador na história da democracia do país levou a redução nas pautas de gênero e sexualidade e reduziu o apoio a programas que focam nas necessidades de homens que fazem sexo com homens”, diz o estudo.
Mas não é só isso. A mudança no comportamento sexual entre os jovens, que não teme mais a Aids, também influencia no aumento da taxa de transmissão do vírus. O estudo mostra que é justamente a faixa etária mais infectada que dá menos importância ao sexo seguro e ao risco de contrair HIV por acreditar na eficácia dos tratamentos disponíveis na saúde pública e medicamentos de profilaxia.
Na entrevista, Mandetta faz críticas à atual política de controle do HIV, dizendo que é necessário rever o padrão de comunicação nessas campanhas. A própria pesquisa encomendada pelo ministério concluiu que para a redução da taxa de infectados no Brasil é preciso investir em abordagens e campanhas que envolvam as comunidades LGBT e também que falem com os jovens para conscientizar sobre os riscos da HIV e a importância de se proteger durante o sexo.
Não é com uma política de prevenção moralista que essas metas serão alcançadas, especialmente entre as populações mais vulneráveis. O Brasil já foi considerado um dos países modelos no tratamento da Aids e conseguiu essa resposta graças à combinação de ações, como defesa de direitos civis, combate ao preconceito, aumento da autoestima das populações afetadas, distribuição de preservativos, acesso ao teste de HIV e tratamento com remédios antirretrovirais.
Nos últimos anos, no entanto, o governo federal tem colecionado equívocos que podem levar ao agravamento da epidemia de Aids. A contar pelas declarações da gestão Bolsonaro e pelo aumento da bancada conservadora no Congresso, a coleção de retrocessos deve crescer muito mais a partir desta terça (1º).
Cláudia Collucci