Estudos mostram que a mulher agredida falta mais, tem menos concentração e fica menos tempo no mesmo emprego
(O Globo, 18/08/2019 – acesse no site de origem)
RIO – A primeira agressão veio quando a filha Sofia, hoje com 6 anos, ainda era um bebê. Um soco direto no olho foi a reação do marido ao saber que a mulher tinha falado com vizinhos sobre os filhos dela do primeiro casamento.
— Como eu ia esconder isso? Esconder meus filhos? Uma vizinha viu e chamou a polícia. Ele foi preso em flagrante, mas liberado por ter residência e emprego fixos. O casamento continuou. Ele dizia que ia mudar, me dava rosas, perfume. Minha mãe falava que toda mulher passa por isso, que o importante é ter as contas pagas e comida em casa — lembra Morghana Soares, de 32 anos, que fez mais de dez boletins de ocorrência em 11 anos de casamento.
Mãe de cinco filhos, Morghana escondia as agressões. Tinha vergonha, o que a levava a faltar ao trabalho na Avon, onde é operadora de produção. O absenteísmo é uma das consequências da violência doméstica, que afeta não só a atividade profissional das mulheres, mas também a produtividade das empresas.
Dois estudos sobre o tema, um do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e outro da Universidade Federal do Ceará e do Instituto Maria da Penha, mostram que a mulher agredida falta mais, tem menos concentração e poder de decisão e fica menos tempo no mesmo emprego.
Ao investigar como o trabalho afeta a relação da mulher com o parceiro, o economista Daniel Cerqueira, do Ipea, concluiu que, entre as mulheres que estão no mercado, 52% já foram agredidas contra 24,9% entre as que não trabalham. Com o cruzamento de dados do IBGE, o estudo concluiu que as mulheres casadas que trabalham têm menos chance de serem agredidas que as empregadas que estão separadas:
— Mais de um milhão de mulheres são agredidas por ano, 79% delas têm filhos. Não conseguimos saber se a mulher já era agredida antes de separar e isso provocou a separação e as agressões continuaram ou se a violência começou após a separação. O que os dados mostram é que só a autonomia financeira não é suficiente para impedir agressões. Temos que nos antecipar ao problema, com educação de gênero para quebrar a estrutura patriarcal e dar medidas protetivas.
Salário até 15% menor
Para Wânia Pasinato, socióloga e também autora do estudo, a renda permite que a mulher negocie uma vida mais segura:
— Ela faz concessões, como o marido controlar a renda.
No acompanhamento que o professor José Raimundo Carvalho, da Universidade Federal do Ceará (UFC), faz desde 2016 com 10 mil mulheres do Nordeste, 17% das vítimas de agressão relataram entregar parte ou todo o salário para o marido. Entre as que não são agredidas, 10% fazem isso.
A aceitação ou não de um emprego também é afetada pela violência. Entre as que sofreram abusos, 23% desistiram do emprego por pressão do marido. Entre as que não sofrem violência, 9%.
— A mulher se concentra menos, dorme pior, perde poder de decisão, fica mais estressada, o que reduz a produtividade — afirma ele.
O reflexo aparece no tempo no emprego. As vítimas ficam quase cinco anos no mesmo emprego, contra mais de seis anos das que não sofrem:
— A mulher agredida falta ao trabalho 18 dias por ano. O custo disso para economia é de R$ 1 bilhão por ano, com 15 milhões de dias perdidos e o salário delas é de 12% a 15% menor. O setor privado está muito acanhado e também precisa se responsabilizar pelo combate à violência, que custa caro ao setor produtivo.
A vida de Morghana começou a mudar quando chegou com o braço quebrado no trabalho, na Avon. A médica percebeu a violência e a encaminhou para psicólogos, advogados, apoio financeiro e o acionamento da polícia para impedir a aproximação do agressor.
A Avon criou o instituto há dois anos, após a morte de duas funcionárias. Mafoane Odara, gerente do Instituto Avon, concorda com o professor José Raimundo sobre a falta de ação das empresas:
— Cerca de 20% das faltas das mulheres são pela violência, que caem 70% quando são atendidas. Quando começamos, havia 18 denúncias, hoje são dez casos por mês. Oferecemos prevenção, acolhimento e suporte para a mulher começar de novo.
O primeiro passo é treinar a equipe:
— Marcas no pescoço podem indicar estrangulamento, que a mulher corre risco de vida e deve ser tirada de casa.
Mafoane avisa que no fim do mês será criada coalização com mais de 70 grandes empresas que vão se comprometer a implantar programas semelhantes ao da Avon. Morghana ainda luta na Justiça para ter a guarda dos filhos.
— Mas agora tenho sonhos de ter carteira de motorista, minha loja de roupas e morar noutra cidade onde eu e meus filhos estaremos seguros — afirma ela.
Por Cássia Almeida