Imagine João, um menino de 12 anos que pesquisa o termo “pornografia” na internet.
(BBC News Brasil, 10/11/2019 – acesse no site de origem)
“O João quer ver um peito, uma bunda — normal, um adolescente tem essa curiosidade — e aí ele entra no Google e o que aparece para ele? Um vídeo que a legenda diz: ‘se você é um homem de verdade, é isso que você tem que assistir’. E o que é o vídeo? Uma cena de sexo super violenta contra a mulher”, descreve a consultora em educação pública e gênero Amanda Sadalla.
O resultado, ela diz, é que João vai crescer entendendo que a pornografia mostra o sexo que ele tem de praticar.
“Esse menino vai ter uma relação sexual com uma menina e, na prática, não acontece o que ele viu na pornografia. A pornografia diz que ele vai ter um nível de poder absurdo, que essa menina vai ter um nível de prazer absurdo, e não acontece. Aí ele força a menina, porque ele quer que ela tenha trilhões de orgasmos, como mostra a pornografia, e que ele tenha um nível de prazer absurdo, como mostra a pornografia.”
É para evitar esse roteiro, que pode levar à violência sexual, que Sadalla defende a necessidade de discutir a pornografia nas escolas. Ela argumenta que a indústria pornográfica incentiva “uma sexualização super precoce” e leva crianças e adolescentes a relacionarem sexo com violência.
“A gente precisa falar de pornografia na escola. Se a gente não falar sobre pornografia, os meninos vão continuar aprendendo que sexo é violento”, diz. “Tem meninos de 13 anos totalmente viciados em pornografia.”
A consultora trata do assunto em oficinas com adolescentes de 12 a 18 anos em escolas do Estado de São Paulo, promovidas em parceria com o Instituto Liberta, que tem como missão combater a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil.
Ela acredita que, em vez de imaginar que se possa evitar totalmente que os jovens assistam ao conteúdo proibido para menores, é mais eficaz explicar que os vídeos não refletem a realidade e que eles não devem se inspirar neles — que tratam as mulheres como objetos — quando tiverem suas próprias relações.
“O trabalho que a gente faz é explicar que a pornografia não é realidade, que eles não devem reproduzir um homem agressivo, que não se preocupa se a mulher está se sentindo confortável. A ideia é que o próprio aluno entenda que aquilo não é saudável. Entendo que isso é mais efetivo do que dizer ‘não assista’.”
Sadalla lembra de uma vez em que mencionou o termo “pornografia violenta” e uma aluna perguntou o que isso significava. A resposta veio de um colega adolescente.
“Ele respondeu ‘como assim você não tá entendendo? É o que os meus amigos assistem todos os dias’. E ele sabia explicar com todos os detalhes o que é uma pornografia violenta”, conta Sadalla.
O que é violência sexual?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência sexual como “todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho”.
A coerção pode acontecer “de diversas formas e por meio de diferentes graus de força, intimidação psicológica, extorsão e ameaças”. Também pode ocorrer se a pessoa não estiver em condições de dar seu consentimento, como sob efeito de álcool ou outras drogas, ou dormindo.
Alguns exemplos são o estupro — praticado por pessoas conhecidas ou desconhecidas — e o assédio sexual, que pode acontecer na escola, no local de trabalho e em outros ambientes.
Entre as consequências da violência sexual para a saúde das mulheres, a OMS aponta gravidez não planejada, aborto inseguro, disfunção sexual, infecções sexualmente transmissíveis, depressão, transtorno por estresse pós-traumático, ansiedade, dificuldade para dormir, comportamento suicida e transtorno de pânico.
Quatro meninas de até 13 anos estupradas por hora
A violência sexual acontece principalmente dentro de casa. Do total de estupros registrados em 2018 no Brasil, em 75,9% dos casos as vítimas possuíam algum tipo de vínculo com o agressor (parentes, companheiros, amigos ou outros).
“A violência acontece em todas as classes, com pessoas de todas as cores. Mas, quando estamos falando de crianças que vivem na pobreza, é ainda mais difícil sair desse ciclo de violência”, diz Sadalla.
Nesse caso, ela explica que a dificuldade pode vir do fato de que muitas vezes a mãe, que pode também sofrer violência do mesmo agressor, depende financeiramente dele. “Existe aí um medo de ter uma separação desse agressor e essa mãe não saber como vai se sustentar.”
Outro cenário que pode levar a mãe a não denunciar, segundo a consultora, é o medo de mais uma reação violenta do agressor.
“Muitas vezes escuto a escola culpabilizando a mãe. ‘Olha essa mãe que sabe que a filha sofre violência e não faz nada’. Eu entendo a raiva, mas muitas vezes essa mãe também sofre violência e ela tem medo de denunciar porque tem medo de esse homem fazer algo ainda pior com ela e ela não ter mais como cuidar da filha. Ela fala ‘se eu morrer, quem vai cuidar da minha filha?’.”
É exatamente pelo fato de a violência muitas vezes vir de algum membro da família que Amanda Sadalla diz que é importante o tema ser discutido no âmbito escolar.
“É por isso que é tão importante a gente entender que não adianta a criança buscar ajuda na escola e a escola dizer ‘vou resolver com os seus pais’. Por isso que o Estado tem que entrar. Às vezes a família é onde está o problema, por isso vem a ajuda da assistência social.”
A maioria dos 66 mil casos de estupro registrados no Brasil em 2018 envolveu vítimas de até 13 anos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Foram registrados no ano passado 66.041 casos de estupro, o que dá uma média de 180 casos por dia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Oito a cada dez vítimas eram mulheres.
Pelo recorte de idade, os dados mostram que quatro meninas de até 13 anos foram estupradas por hora em 2018.
Considerando as vítimas de até 17 anos, os casos somam 71,8% do total.
O anuário destaca que “os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia, o que indica que os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema que vitima milhares de pessoas anualmente”.
Segundo o documento, no caso do Brasil, a última pesquisa nacional de vitimização estimou que apenas cerca de 7,5% das vítimas de violência sexual notificam a polícia.
Sadalla, que tem 23 anos, diz que começou o trabalho muito focada nas meninas, que são as principais vítimas, mas viu que é essencial envolver os meninos.
“Eu encontrei vários meninos que não queriam falar sobre violência porque as mães sofrem violência. Eu encontrei meninos que, quando sentei com eles e fui conversar, eles disseram: ‘nossa, agora estou vendo como eu às vezes sou agressivo com a minha namorada como meu padrasto é com minha mãe e estou repensando'”, disse.
E, quando os meninos são vítimas de violência sexual, Sadalla diz que há ainda mais dificuldade de pedir ajuda.
“Existe essa ideia de que o menino não pode pedir ajuda, não pode chorar. Então às vezes a gente acha que meninos não sofrem violência, mas na verdade eles sofrem, é que eles não buscam ajuda”, diz. Se eu não falo com os meninos sobre masculinidade tóxica, que é o machismo se virando contra eles, eles aprendem que não podem se expressar, chorar, buscar ajuda.”
Como denunciar violência sexual?
Depois que começou a dar oficinas para crianças sobre o assunto, Sadalla — que é formada em Administração Pública pela FGV e cursa mestrado em Políticas Públicas na Universidade de Oxford, na Inglaterra — passou a receber mensagens de professores que buscam a melhor forma de ajudar os alunos que relatam casos de violência sexual.
1. Ouça com cuidado
O primeiro passo, segundo ela, é ouvir a criança ou adolescente com muito cuidado e de forma empática. Evitar, por exemplo, perguntar por que a criança não falou sobre o assunto antes.
“A vítima de violência sexual já se sente culpada pela violência sofrida. Porque nós, principalmente mulheres, crescemos em uma sociedade em que a gente entende que se você sofre uma violência é porque você mereceu, porque sua saia estava curta e por aí vai. Se você vira pra esse aluno e fala ‘por que você não me contou antes?’, essa culpa que ele já carrega se torna ainda maior.”
2. Registre: não faça a criança repetir o relato várias vezes
A consultora diz que um dos principais cuidados é evitar pedir para a vítima contar diversas vezes o que aconteceu com ela.
“O que acontece na maioria dos casos: a Maria conta para a professora de Português que o pai está tocando nela. A professora de Português não sabe o que fazer e leva a Maria na sala da direção e pede para a Maria contar pra diretora. A Maria conta de novo o que aconteceu, a diretora vira e fala ‘hum, isso é caso de polícia’ e leva para a polícia. E a Maria de novo conta o que aconteceu. E por aí vai”, diz.
“Aí a Maria, que confiou na professora de Português — foi com ela que ela queria conversar — acaba recontando a história para cinco pessoas. E cada vez que a vítima reconta esse trauma, ela revive o trauma. Isso é o que chamamos de violência institucional.”
A recomendação, segundo Sadalla, é que a pessoa registre por escrito a história que a vítima contou, para evitar que ela tenha que repetir diversas vezes.
A consultora diz que, quando um aluno relata um caso de violência, ela sempre procura elogiar a coragem e diz “você foi muito forte de conseguir vir até mim e contar o que aconteceu, porque isso não é fácil, então obrigada por ter confiado em mim e ter vindo conversar comigo.”
3. Qual órgão procurar?
No caso dos professores, Amanda diz que eles devem informar o caso para a direção da escola, sem expor a criança, para que a diretoria faça o contato com os órgãos adequados. Ela explica que a organização dos municípios varia, mas que a recomendação inicial é entrar em contato com o Conselho Tutelar.
No entanto, se a violência estiver acontecendo naquele momento e a criança estiver correndo risco se voltar para casa, a recomendação da consultora é para que a direção ligue para a polícia.
Se, por algum motivo, há um receio de fazer a denúncia, a indicação é ligar para o Disque 100, que é anônimo. O serviço funciona todos os dias, 24 horas. As ligações são gratuitas e podem ser feitas a partir de telefone fixo ou móvel.
Qualquer pessoa pode fazer uma denúncia por meio do Disque 100. Ela é recebida pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que fornece número de protocolo para que o denunciante possa acompanhar o andamento.
Sadalla recomenda que o adulto que busca ajudar a criança explique a ela qual tipo de ajuda vai buscar, para ajudar a criança a retomar o controle sobre a vida dela e entender que ela tem direito sobre o corpo dela.
“Por mais que a gente tenha medo de denunciar, a gente não pode se omitir. A gente não pode saber que tem alguém sofrendo violência e não fazer nada sobre isso. Ainda mais porque se essa criança vem, me conta que tem algo acontecendo e eu não faço nada, o que ela aprende? Que não adianta nada ela pedir ajuda.”
Sadalla, que também dá treinamento para delegados e delegadas para casos de violência doméstica, diz que no Brasil prevalece a ideia de que violência doméstica e sexual é problema exclusivamente de polícia.
“Isso não é verdade. Polícia é uma parte do negócio. Às vezes o que a vítima precisa é de atendimento da assistência social, de atendimento psicológico. A delegacia tem que encaminhar para outros serviços, mas ela não consegue resolver todos os problemas. A grande lacuna que temos é que a delegacia, a saúde, a assistência social não se comunicam.”
Por Laís Alegretti