Em setembro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução que limita a autonomia de grávidas caso haja discordância sobre procedimentos.
(HuffPost, 18/11/2019 – acesse no site de origem)
A resolução no. 2232 do Conselho Federal de Medicina (CFM) viola direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e meninas. Publicada em 17 de setembro de 2019, gerou grande polêmica e críticas por ferir direitos fundamentais e desrespeitar estândares internacionais de direitos humanos relacionados à prática da violência obstétrica.
Coincidentemente ou não, esta resolução aparece junto com a celebração dos 25 anos do Programa de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD/ 1994), que aconteceu de 12 a 14 de novembro, em Nairóbi, Quênia.
Os compromissos do programa, assinado pelo Brasil, estão espelhados em nossas leis e políticas de saúde. Este “Programa de Ação” conceitua saúde reprodutiva como a capacidade de se reproduzir com liberdade de tomar decisões informadas e responsáveis e garantia de acesso aos bens, instalações e serviços específicos.
Em 11 de setembro, seis dias antes da publicação da Resolução do CFM, a Relatoria Especial sobre Violência contra a Mulher das Nações Unidas divulgou relatório em que aborda os maus-tratos e a violência obstétrica – inclusive no parto – praticados nos serviços de saúde reprodutiva.
O documento responsabiliza a falta de qualidade na assistência como atentado ao direito de viver uma vida livre de violência, ao direito à vida, saúde, integridade corporal, privacidade, autonomia e não discriminação. Isto diz respeito ao sexismo, racismo institucional, violência psicológica, tortura, coerção ou qualquer tratamento desumano e degradante.
O que diz a resolução do CFM
Já a resolução de nº 2232/19 do Conselho Federal de Medicina, publicada em 16 de setembro, estabelece que “a recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.
De acordo com o documento, “em caso de discordância insuperável entre o médico e o representante legal, assistente legal ou familiares do paciente menor ou incapaz quanto à terapêutica proposta, o médico deve comunicar o fato às autoridades competentes (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente”.
Na prática, caso a mulher discorde do médico em relação a algum procedimento ligado à gestação, vale a decisão do médico, que pode denunciar a paciente para autoridades.
Portanto, quando é negado às mulheres o direito de tomar decisões sobre os cuidados de saúde, em todo o ciclo reprodutivo, configura-se violação dos direitos humanos, que pode ser imputada aos estados e sistemas de saúde.
Profissionais de saúde têm o dever de respeitar este marco legal e, neste sentido, a resolução do CFM é uma afronta, ao conferir ao profissional médico, em seu artigo 5º, a prerrogativa de não aceitar a recusa terapêutica da paciente.
Isso viola também o Art. 24 do Código de Ética Médica, que veda a este profissional “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”.
Neste particular, a Resolução omite o dever do médico de prestar informações à mulher vítima de violência sexual sobre seu direito ao aborto legal (previsto no art. 128, II, do Código Penal e regulado pela Norma Técnica do Ministério da Saúde).
A resolução dispõe ainda que a “recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe-feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”. Conferindo ao médico o direito de se opor à vontade da paciente grávida, este dispositivo contraria o entendimento jurídico prevalente sobre a matéria.
É preciso lembrar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2008, contra a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3.510) que pretendia barrar, no Brasil, as pesquisas com células tronco embrionárias. Por 6 votos a 5 foi considerado constitucional o artigo 5.º da Lei de Biossegurança, que autorizava a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisa científica.
Na ocasião, o Supremo se manifestou sobre o conflito entre direitos dos embriões e direitos das mulheres grávidas e, em seu voto, o relator do caso afirmou que o embrião não pode ser enquadrado na categoria de pessoa com titularidade de direitos fundamentais (como o direito à vida), pois estes pertencem às pessoas vivas e nascidas.
Ou seja, o conceito de vida humana está revestido de uma dimensão biográfica, além da dimensão meramente biológica. O parâmetro vigente, de acordo com esta decisão do STF, é de que não existe correspondência entre a vida humana e pessoa humana, razão pela qual o embrião e o feto não podem ser classificados como pessoa sujeita de direitos.
Por fim, a resolução também menciona o direito individual do médico à objeção de consciência (Art. 8º) como justificativa para a recusa de prestar assistência. Mas para proteger pacientes do eventual dano que esta recusa possa acarretar, impõem-se limites éticos e legais. Sendo direito individual de quem exerce a profissão, instituições de saúde não estão autorizadas a lançar mão desta prerrogativa para negar às mulheres e adolescentes o acesso à saúde sexual e reprodutiva. O próprio Código de Ética Médica, em seus princípios fundamentais, abre exceção ao direito individual nos casos de ausência de outro médico, urgência ou emergência, ou quando a recusa pode trazer danos à saúde do paciente.
As atenções estão voltadas para esta discussão, que têm sido tema de audiências públicas nas Defensorias Públicas da União de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, e é preciso que estejam de forma a garantir o direito das mulheres, incluindo respeito à sua autonomia e acesso integral à saúde.
Por Beatriz Galli