Prisão aos médicos justos, por Debora Diniz e Giselle Carino

29 de abril, 2020

É hora de os médicos desobedecerem a lei penal e cuidarem das mulheres para que não morram de aborto clandestino

(El País Brasil, 29/04/2020 – acesse no site de origem)

“A prisão é o lugar do homem justo”, escreveu Henry Thoreau sobre a desobediência civil. A prisão ou o risco dela deveria ser o lugar de médicos justos durante a pandemia de covid-19 em países onde o aborto é criminalizado. Não ficariam presos mais do que a noite que também experimentou Thoreau pela desobediência civil em seu tempo. Precisamos de médicos nos hospitais para salvar a humanidade. Exatamente por serem tão essenciais é que este é o momento de serem virtuosos e justos. É hora de os médicos desobedecerem a lei penal e cuidarem das mulheres para que não morram de aborto clandestino.

Por onde regras restritivas de contenção à pandemia se cruzaram com desigualdades de gênero, como a violência doméstica ou a criminalização do aborto, mais mulheres morreram ou estiveram em risco de vida. Ao se ignorar as necessidades de saúde reprodutiva como parte da resposta de saúde pública à epidemia, o controle do surto de Ebola na Libéria, Guiné e Serra Leoa, levou a um crescimento de 75% no óvbito por mortalidade materna. Da China ao Equador, as normas de isolamento social aumentaram a vulnerabilidade de meninas e mulheres à violência doméstica. Inclusive nas taxas de feminicídio, como se registrou em São Paulo, com um aumento no número de notificações de mulheres mortas em casa quando comparado a mesmo período em 2019.

Os médicos justos devem seguir a consciência e praticar a boa medicina. Aborto é uma necessidade de saúde que não desaparece durante uma pandemia. Ao contrário, se torna ainda mais necessário de ser oferecido sem barreiras de acesso ou estigmas: a saúde reprodutiva permanece como uma necessidade de saúde durante qualquer situação de emergência social, seja ela um conflito armado ou uma crise humanitária. O silêncio dos governantes não pode ditar a consciência dos que sabem como proteger vidas: os médicos devem ser mais do que heróis de uma pandemia, é preciso que sejam transgressores para o mundo mais justo pós-pandemia.

Em 1973, um grupo de mais de trezentos médicos franceses seguiram o Manifesto 343, liderado por Simone de Beauvoir, e declararam-se cuidadores de mulheres em busca de aborto, ou seja, objetores de consciência a uma lei injusta que os proibia de exercer corretamente a medicina. A publicação do Manifesto das 343 mulheres foi acompanhada de uma charge que dizia “Quem engravidou as 343 vagabundas do Manifesto do aborto?”. O “quem” da pergunta era uma provocação ao debate público sobre como desigualdades de gênero conformam leis e direitos —se são as mulheres que reclamam o direito ao aborto, por outro lado, são os homens no poder que insistem em controlar seus corpos com a fúria da lei penal, inclusive as qualificando como “vagabundas”.

A pergunta das mulheres que sobrevivem à pandemia de covid-19 em países onde o aborto é crime seria diferente. Tem o senso de urgência e desamparo que acompanha nossas vidas: “Quem são os médicos que nos abandonam?”. Uma pandemia é uma emergência para a sobrevivência. Dependemos dos governos para existir e para cuidar das mulheres cujas desigualdades prévias as deixaram ainda mais vulneráveis à anomia da vida, como as mulheres pobres, negras e indígenas, ou meninas vítimas de violência sexual em casa. Se há um chamado ético na suspensão da normalidade pela pandemia, a resposta não pode ser a submissão às regras que governavam nossos corpos ou conformação aos privilégios que nos salvam, mas a consciência sobre o justo. Essa nova consciência pede a desobediência civil de médicos ao cuidado no aborto.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown.

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.

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