(Instituto Beja) Neste mês de agosto, a Lei Maria da Penha completa 16 anos. Os dados de violência contra a mulher ainda chocam muito e revoltam. Segundo levantamento divulgado em março deste ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada sete horas uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil e a cada 10 minutos uma mulher é estuprada. Um outro estudo divulgado em outubro de 2021 também pelo Fórum e pelo Fundo da Nações Unidas para a Infância (UNICEF) mostrou que a cada 20 minutos, uma menina foi estuprada no Brasil entre 2017 a 2020. O ato configura crime de estupro de vulnerável.
Entrevistamos a Diretora Executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, e a Diretora de conteúdos e editora-chefe, Marisa Sanematsu, que conversaram com o Instituto Beja sobre os avanços alcançados nesses anos, como a definição das cinco formas de violência doméstica, e os desafios a serem enfrentados para mudar essa dura realidade, como a efetivação pelo Estado brasileiro de uma política pública de enfrentamento à violência contra as mulheres, maior acesso a serviços de proteção em locais remotos, profissionais capacitados e atendimento humanizado. Confira abaixo a entrevista completa.
1) Em 2006, vocês ajudaram a criar a Lei Maria da Penha por meio de dados sobre a violência contra a mulher que o Instituto Patrícia Galvão levantou. Quais os principais avanços conquistados ao longo desses 16 anos?
No primeiro semestre de 2006, o Instituto Patrícia Galvão lançou a pesquisa de opinião “Percepções de Impunidade para Violência contra a Mulher”, realizada em parceria com o Ibope e apoio do Unifem e da Fundação Ford. Essa pesquisa já revelava que 51% dos entrevistados conheciam ao menos uma mulher que era agredida pelo parceiro. E três em cada quatro entrevistados consideravam que as penas aplicadas nos casos de violência contra a mulher eram irrelevantes e que a justiça tratava este drama vivido pelas mulheres como um assunto pouco importante. Na época, a deputada federal Jandira Feghali, que foi relatora do projeto da Lei Maria da Penha na Câmara, adotou os dados dessa pesquisa de opinião pública para debater e dialogar em todas as regiões do país sobre a importância de termos uma legislação que protegesse as mulheres brasileiras. Assim, a Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006.
Nestes 16 anos da Lei Maria da Penha, são muitos os avanços. Por exemplo, a lei definiu quais são as cinco formas de violência doméstica. Antes, as pessoas pensavam em violência doméstica apenas como a violência física que deixa marcas visíveis. Hoje essa visão ainda persiste entre algumas pessoas, mas a maioria já tem uma visão mais ampliada da violência doméstica e sabe que ela pode se manifestar de diferentes maneiras, também como violência psicológica, moral, patrimonial e sexual. A Lei Maria da Penha define as obrigações e responsabilidades dos setores públicos na prevenção da violência, assistência e proteção das mulheres e responsabilização dos agressores. Alguns estão mais ou menos avançados na implementação de suas políticas. No caso do Judiciário, podemos destacar as medidas protetivas de urgência e a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que têm a competência no julgamento de causas cíveis (de família) e criminais. Embora ainda restritos às grandes cidades, esses juizados contribuem para reduzir as barreiras que as mulheres em situação de violência doméstica enfrentam no acesso à justiça.
2) Nessas duas décadas de atuação do Instituto Patrícia Galvão, vocês se tornaram referência nacional e internacional na defesa dos direitos das mulheres por meio de ações de comunicação e de incidência no debate público, como a realização de pesquisas de opinião, a produção de conteúdos, além da promoção de eventos e campanhas para fomentar a reflexão social e demandar respostas do Estado e/ou mudanças na sociedade e na mídia. Quais os principais desafios hoje para alcançar dados fidedignos sobre a violência contra a mulher e também para sensibilizar o poder público?
Os desafios estão em várias frentes, começando pela coleta e registro dos dados pelos órgãos públicos – da saúde, da segurança pública e da justiça –, que devem incluir uma capacitação dos profissionais desses serviços para o preenchimento e cadastramento nas bases de dados, que deveriam adotar uma nomenclatura comum para que os registros alimentem uma base nacional de dados sobre violência contra as mulheres, que seja transparente e acessível a toda a sociedade. Mas é preciso ir além dos chamados dados administrativos, que são gerados por esses órgãos e serviços públicos, e investir na pesquisa acadêmica e também nos estudos produzidos por organizações da sociedade civil, para possibilitar coletas de dados para realizar análises mais aprofundadas e com recortes específicos, pois muitas formas e vítimas de violência de gênero continuam invisibilizadas. Infelizmente, por falta de compromisso político e de investimentos, ainda estamos longe de captar a realidade sobre os diversos modos e contextos em que se dá a violência contra as mulheres no Brasil.
3) Além das Delegacias da Mulher, hoje há novas ferramentas para solicitar medida protetiva, como o aplicativo Maria da Penha Virtual, o telefone 197 ou a opção de ir a uma defensoria pública. Houve um aumento significativo de denúncias com esses recursos remotos e com a alternativa da defensoria pública?
Todas essas ferramentas que agilizam e facilitam a busca de ajuda pelas vítimas são muito importantes. Mesmo antes da pandemia de Covid-19 já se sabia que muitas mulheres que vivem relações violentas sentem medo e são também controladas e vigiadas. Além disso, sabemos também que existem poucos serviços para atender essas mulheres: apenas 7% dos municípios brasileiros têm delegacias da mulher, e elas estão concentradas nas capitais e grandes cidades. Ainda não temos números que comprovem que houve aumento de denúncias em razão direta dessas novas tecnologias, mas com certeza elas estão contribuindo para que mais mulheres busquem ajuda para sair desse ciclo de violência doméstica. Já em relação às defensorias públicas, desde 2006 a Lei Maria da Penha determina que as vítimas de violência doméstica têm direito de ser acompanhadas pela defensoria em todas as questões legais relacionadas ao processo de violência doméstica. As defensorias públicas também possuem núcleos de atendimento a mulheres em situação de violência que estão preparados para orientar e atender essas mulheres em todas as suas demandas.
4) Em 2021, em média, a cada sete horas uma mulher foi vítima de feminicídio no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número choca. Quais os principais desafios enfrentados hoje para a diminuição dos casos de violência contra a mulher e feminicídios?
Em primeiro lugar, é preciso partir da compreensão de que os feminicídios são, em sua maioria, “mortes anunciadas”. E os principais desafios para o enfrentamento ao feminicídio são conhecidos, isto é, a efetivação pelo Estado brasileiro, nos diferentes níveis – federal, estadual e municipal –, de uma política pública de enfrentamento à violência contra as mulheres. A Lei Maria da Penha é exemplar, porém sua aplicação ainda está aquém da necessidade das mulheres brasileiras que vivem em diferentes contextos e estão vivendo sob violência doméstica, sozinhas, muitas vezes isoladas, dormindo ao lado de um agressor que muitas vezes anda armado. A pesquisa de opinião sobre feminicídio realizada pelo Instituto Patrícia Galvão em 2021 mostra que a violência doméstica e o risco de feminicídio assombram o cotidiano das brasileiras: 30% das mulheres já foram ameaçadas de morte por um parceiro ou ex, sendo que 7% disseram já terem sido ameaçadas por mais de um parceiro. Chama atenção que, entre as mulheres que já sofreram ameaça de morte pelo atual ou ex-parceiro, mais da metade disse que também chegaram a sofrer tentativa de feminicídio. Esses dados reforçam a importância de que as ameaças sejam levadas a sério, tanto pela mulher como pelas autoridades quando a mulher faz uma denúncia. Daí a urgência de implementação de mais serviços de atendimento especializados em todo país. Mas não basta apenas ter mais serviços, é preciso ter profissionais sensibilizados e capacitados para prestar um atendimento correto e humanizado para as mulheres que estão vivendo a violência doméstica.
5) Entre as recentes conquistas da Lei Maria da Penha, está o fato de que em abril deste ano, ela também passou a poder ser aplicada em casos de agressão contra mulheres transexuais. A decisão é inédita num tribunal superior e pode orientar futuras análises de casos semelhantes nas instâncias inferiores. Há outras novidades em discussão? O que ainda precisa melhorar, ser endereçado?
Quando a Lei Maria da Penha foi criada, houve resistência de alguns juizados em aplicá-la, alegando que ela era inconstitucional por tratar de forma diferente homens e mulheres. Essa questão só foi pacificada seis anos depois, quando o STF definiu que a Lei 11.340 era constitucional, pois há uma grave e evidente desigualdade de poder entre os sexos, o que torna as mulheres muito mais vulneráveis à violência doméstica. Porém, até hoje vemos magistrados insensíveis à violência contra as mulheres, e ainda mais no caso de violência contra mulheres trans. A partir dessa decisão de junho deste ano, espera-se que ela de fato oriente as decisões dos tribunais, mas será preciso trabalhar fortemente para vencer a resistência desse setor do Judiciário que se recusa a aceitar que as transexuais também são mais vulneráveis à violência doméstica, além de estarem em maior risco de feminicídio, tanto no contexto doméstico como nas ruas, por transfobia, inclusive por parte de agentes da polícia.
6) Como cada um de nós pode colaborar no nosso dia a dia para essa pauta tão fundamental, que é a redução da violência contra as mulheres e a proteção dos seus direitos?
Para efetivar direitos é preciso que exista compromisso político e social para a implementação de serviços de proteção e acolhimento das mulheres em situação de violência e ameaça de feminicídio. Ainda hoje, uma das principais barreiras enfrentadas é a insuficiência dos serviços perante a demanda das mulheres – seja para ampliar a capacidade dos serviços existentes, seja pela necessidade de criação de mais serviços especializados. Ao mesmo tempo, é fundamental conversar sobre a violência doméstica nas escolas, isto é, incorporar nos currículos diversas ações que promovam a sensibilização para uma efetiva transformação social e cultural que promova, por meio da informação e do debate, a substituição da violência pelo diálogo como forma de resolver conflitos, o respeito às diferenças e busca da igualdade de gêneros.