No dia 18 de outubro, uma menina de 11 anos foi estuprada dentro da Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL V), presídio localizado em Itaitinga, na Grande Fortaleza (CE). A criança tinha ido ao local com a mãe para visitar o pai. Durante a visita, a criança desapareceu e logo a mãe acionou a segurança. A menina foi encontrada com outro detento, que foi pego em flagrante, e um exame de corpo de delito comprovou o abuso. Após o episódio, a Casa de Privação Provisória de Liberdade anunciou que não permitiria mais a visita de crianças na unidade –o que deixou as mulheres de outros detentos furiosas com a mãe da vítima.
(Universa, 30/10/2018 – acesse no site de origem)
É comum, em casos de abuso sexual infantil, a culpa recair sobre a mãe mais do que sobre o agressor, principalmente quando é da mesma família. Não é raro ouvirmos por aí perguntas como: “onde estava a mãe da criança que não percebeu?”, “a mãe não foi cúmplice?”, “como ela tem coragem de deixar o filho sob a guarda de um abusador?”.
Mas é preciso checar os dados sobre violência sexual infantil no país, antes de qualquer julgamento. No boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde, em junho de 2018, consta que houve um aumento de 83% nas notificações gerais de violências sexuais contra crianças e adolescentes, entre 2011 e 2017. O Ministério da Saúde define como “violência sexual” os seguintes casos: estupro, assédio, pornografia infantil e exploração sexual. Em geral, o crime mais denunciado no período de pesquisa do boletim foi o estupro.
A maioria dos casos reportados foi cometida dentro de casa, por familiares ou pessoas do convívio da família. O documento também mostra que a violência tende a se repetir. Quanto ao gênero dos autores da violência, o boletim diz que os principais agressores sexuais são homens: 92,4% dos casos reportados de abuso sexual a adolescentes foram causados por alguém do sexo masculino. No caso de vítimas crianças, 81,6% dos agressores eram homens. Isso significa que, geralmente, quem comete o crime são as figuras masculinas da família: pais, padrastos, namorados, avôs, tios etc.
Outro padrão observado no estudo é que as vítimas costumam ser, na maioria das vezes, do sexo feminino: 74,2% das crianças que sofreram algum tipo de violência sexual eram meninas. Este número aumenta entre vítimas adolescentes: chega a 92,4%. E, apesar de haver vítimas do sexo masculino, especialistas acreditam que há um preconceito maior em denunciar: há o medo de a família e a criança serem vítimas de discriminação.
“Mas onde estava a mãe?” é uma questão machista
Antonio Rivaldo Brasil de Lima, psicólogo membro do Centro Nacional de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV) do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, afirma que, quando há a acolhida de mães cujos filhos foram abusados sexualmente, elas se encontram em um estado muito fragilizado e que permite a autoculpa. Elas acham que não foram protetoras o suficiente.
“Tem alguns casos, que são minoria, em que pode ter acontecido algum tipo de descuido: a criança dá alguns indícios [de que foi abusada] e o adulto não percebe. Às vezes, ele até suspeitou, mas é uma ideia tão inimaginável que o adulto prefere afastar a suspeita”, exemplifica. “Em outros casos, realmente, não dá pra culpar, porque, imagine: a mãe está casada com o homem há anos, a
pessoa se mostra confiável, boa, que gosta da criança e, de repente, o filho revela que a pessoa abusou dela”. O psicólogo crê que há machismo em automaticamente transferir toda a carga de culpa à mãe, quando não foi ela quem cometeu o crime.
Para ele, outro fator que pode agravar a autoculpa é a ruptura que a denúncia causa no ambiente familiar. “O abuso muda totalmente a dinâmica da família, causa um certo buraco. Alguns membros acreditam que o abuso aconteceu, outros têm dificuldade de aceitar. Principalmente, em casos de adolescentes, duvidando da revelação da vítima”.
Gobbetti crê que é importante investigar se a família como um todo já tinha uma dinâmica instável. Ela conta que é comum, em ambientes como estes, haver situações de abuso emocional, perpetuadas pelos adultos da família, que não são facilmente vistas como nocivas às crianças ou como facilitadoras da violência sexual. Muitas vezes, este comportamento se dá ao fato dos próprios adultos terem sido criados de forma pouco saudável, por isso repetem as atitudes violentas, física e emocionalmente falando, com as próximas gerações.
Lima confirma que o CNRVV recebe diversos casos desta mesma natureza. “Atendemos muitas famílias vulneráveis, que estão acostumadas a situações de violência. A gente faz um trabalho de mostrar que isso não deve ser encarado como normal, mesmo fazendo parte da história familiar, com o objetivo de quebrar o ciclo da violência, que passa de geração para geração”.
Para o psicólogo do CNRVV, o importante, durante o acompanhamento, é orientar os parentes para as questões legais que envolvem o crime, garantir o fortalecimento da família e identificar as raízes do abuso para, enfim, acabar com o círculo vicioso de violência. “É importante ter medidas de proteção com a vítima: a denúncia, o boletim de ocorrência, o afastamento do abusador da
criança. Para mães que chegam sentindo culpadas, a gente procura mostrar empatia e orientar no trato com a criança: se ela quiser falar sobre o que aconteceu, ela deve ser acolhida sem o adulto ficar numa posição investigativa, e realmente ouvi-la”.
Como acontece o abuso?
Gisele Gobbetti, psicóloga responsável do Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que, para entender a violência sexual contra crianças e adolescentes cometida por parentes, é preciso especificar como é a definição de “família”.
“Consideramos ‘família’ as pessoas que tenham o que nós chamamos de ‘vínculo social de parentesco’. Por exemplo, a gente sabe que, na nossa sociedade, um vizinho pode tomar conta de uma criança. Então, ele tem uma relação de cuidado com ela e que deveria ser de confiança. Se acontecer um caso de abuso sexual, para nós, também é considerado incesto”, detalha.
O centro de acolhimento costuma atender casos em que já foi feita uma denúncia de abuso sexual infantil –que não necessariamente chegam às varas criminais, mas, sim, às varas de infância e de família–, e os envolvidos são encaminhados para acompanhamento psicológico ao CEARAS. Ao atender estas famílias, Gobbetti observa que, na maioria das vezes, a violência sexual não é um caso isolado. “É raro as famílias chegarem aqui porque aconteceu um abuso em um episódio. Normalmente, a duração desse tipo de violência é superior a um ano”, conta.
Identificando os sinais de violência sexual infantil
Tanto Gobbetti quando Lima afirmam que é mais fácil perceber que uma criança está vulnerável ao abuso sexual quando a pessoa não é da família da vítima. “Se dentro da família já é complicado, também é difícil a sociedade encarar o que acontece nela, porque [o ambiente familiar] deveria ser um lugar seguro. Então, mesmo o profissional de saúde e o profissional de educação, às vezes, têm dificuldade de olhar esse tipo de situação”, diz Gobbetti. Ela cita que, em boa parte dos casos, as denúncias são realizadas por professores e médicos.
Lima alerta para alguns sinais que podem indicar que algo não vai bem: “Mudança abrupta de comportamento –a criança começa a ficar agitada sem nenhum motivo aparente ou fica muito introspectiva de uma hora para outra. A criança passa a ter a sexualidade muito aflorada, que não condiz com a idade dela”. Ele também cita sintomas mais leves, como dificuldade no sono e dificuldade de confiar em alguém, como indícios de que algo pode estar acontecendo.
Para evitar abusos, é preciso educação
Ambos os profissionais ressaltam a importância de não ter receio de falar sobre abuso sexual para que os casos sejam revelados e denunciados. “O tema deve ser tratado com frequência e não ser mais tabu”, diz Lima.
Ambos pontuam que orientar professores e profissionais da saúde para identificar a violência sexual é crucial para denunciar os crimes. “A gente procura sempre bater na tecla de que esse assunto deveria ser da grade curricular, falar de abuso deveria ser algo a ser tratado com todos e não só em palestras ocasionais”, avalia Lima.
Jacqueline Elise