Caso Zé Mayer: nosso #MeToo pioneiro, por Antonia Pellegrino e Manoela Miklos

21 de janeiro, 2019

Em sociedade onde violência de gênero ainda é regra, caso é marco histórico

(Folha de S.Paulo, 21/01/2019 – acesse no site de origem)

Em março de 2017, fizemos a quebra de silêncio da figurinista Su Tonani. O texto publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas, editado por nós —hospedado por essa mesma Folha— chamava-se “José Mayer me assediou”. A repercussão pautou nos veículos de imprensa brasileiros a discussão sobre assédio, meses antes do #MeToo derrubar poderosos em Hollywood, ensinando ao mundo que um novo tempo chegou. Depois de quase dois anos na geladeira, na última semana, Zé Mayer foi demitido e desligado da Rede Globo.

Muitas e muitos viram com naturalidade o fato da empresa querer se distanciar da imagem negativa que o Brasil hoje tem do ator. Afinal de contas, ele cometeu um crime, assediou uma profissional em seu local de trabalho e fez tudo o que podia para silenciar sua vítima. Algumas e alguns, contudo, seguem incapazes de compreender o que está em jogo.

Após a divulgação da demissão de Mayer, outro ator, Humberto Martins, ao ser questionado sobre o caso do colega em uma coletiva de imprensa, o defendeu: “José Mayer não merecia essa retaliação”. Tese semelhante foi enunciada pelo também ator Paulo Betti, quando disse, no passado, que Mayer estaria sofrendo “uma punição violenta demais”. Afinal, como falou à época da denúncia o ator Caio Blat: “Zé Mayer fez uma brincadeira fora de tom, e na presença de outras pessoas. Não houve intimidação”.

A atriz Betty Faria também saiu em defesa do colega e chamou Su de “piveta”. Ela inclusive criticou colegas de Hollywood que denunciaram casos de assédio, chamando de “tempestade em copo d’água”.

Reações assim, de solidariedade com o agressor e jamais com a agredida, são indícios de que muita gente ainda desconhece o poder da empatia na luta por igualdade. Cabe perguntar: será que estas pessoas, do alto de seus privilégios, sabem em que mundo vivemos?

O Banco Mundial publicou um estudo, em 2015, afirmando que um terço das mulheres do mundo são ou serão vítimas de violência. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher no Brasil é estuprada a cada 11 minutos. Em 70% dos casos de estupro, a vítima conhece seu algoz. O assédio não acontece no baile, na noite; ele não depende do tamanho da saia da vítima; de quantas doses ela bebeu. O assédio tem todas as cores, raças, ele é de direita e de esquerda. O assédio é regra, é norma.

Também na semana passada, a Human Rights Watch tornou público seu relatório anual sobre violações de direitos humanos no mundo. A importante e prestigiada organização concluiu: a violência contra a mulher é uma pandemia global que afeta todos os grupos socioeconômicos de países ricos e pobres.

Quanto ao Brasil, de acordo com o relatório, o número de feminicídios aumentou vertiginosamente.
Ao defender Mayer, enxovalhar Su Tonani ou confundir justiça com retaliação, essas vozes relevantes aderem a um discurso perverso que faz da regra exceção.

Um discurso que não nos permite como sociedade olhar para a violência contra a mulher entendendo que temos um problema cultural a ser enfrentado —um conjunto de práticas que vão desde o fiu-fiu até o feminicídio, e estão presentes em todos os espaços a todo tempo.

Em uma sociedade onde a violência de gênero ainda é regra, o caso Zé Mayer é um marco histórico na construção do novo normal antimachista que as feministas estão construindo.

O ator está sendo responsabilizado pela violência que cometeu. E aqueles que o defendem também precisam tomar consciência de sua responsabilidade ao repetir velhas cantilenas machistas e cooperar para a manutenção de um cruel status quo.

Antonia Pellegrino e Manoela Miklos
Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundations. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueSãoElas.

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