Nilma Lino Gomes: ‘Estão em risco todas as políticas de combate à discriminação racial e de gênero’

20 de novembro, 2019

Em entrevista ao HuffPost Brasil, ex-ministra das Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial diz que o combate à violência contra a mulher só será eficaz quando se voltar para questões de raça.

(HuffPost Brasil, 20/11/2019 – acesse no site de origem)

Três anos e meio após deixar o comando do ministério responsável por ações afirmativas ligadas à pauta das mulheres, da igualdade racial e de direitos humanos, a pedagoga Nilma Lino Gomes, 58 anos, aponta que há um desmonte de políticas públicas nessas áreas no governo de Jair Bolsonaro.

“Ao atribuir o combate ao racismo como se fosse uma pauta ‘de esquerda’, a ministra [Damares Alves] demonstra desconhecimento ou desconsideração com um histórico de lutas do povo brasileiro. O combate ao racismo é uma política de Estado e não de governo”, afirma em entrevista ao HuffPost Brasil em razão do Dia da Consciência Negra e do início, no Brasil, da campanha dos “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, que é promovida pela ONU Mulheres em novembro e dezembro.

Para Gomes, o discurso neoconservador que ascendeu no Brasil afirma todas as identidades a partir de uma perspectiva universal, o que deixa de valorizar as diferenças raciais ou de gênero e desresponsabiliza o Estado no seu dever constitucional de implementar ações para reduzir essas desigualdades.

“Vivemos em um momento político de democracia em risco, no qual todas essas estruturas estão fragilizadas”, aponta. “Isso coloca também em risco todas as políticas e estruturas públicas de combate à discriminação racial e de gênero arduamente conquistadas e construídas em nosso País”, explica.

Primeira mulher negra do Brasil a comandar uma universidade pública federal, a Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), no Ceará, Gomes vê a educação como determinante para transformação social.

“Todo ataque à universidade pública resulta em aumento de desigualdades para as mulheres negras. A universidade pública forma quadros que irão atuar no mercado de trabalho, na política, nos espaços de gestão, poder e decisão. São espaços nos quais se constata a existência do racismo e a sub-representação de negros e negras, em especial, de mulheres negras.”

De acordo com a ex-ministra, o combate à violência contra mulher no Brasil, que ocupa o lugar de 5º país com maior índice de morte violentas de mulheres no mundo ― em especial de mulheres negras ― só será efetivo com a desconstrução do racismo institucional.

“Ainda há um grande desconhecimento por parte das delegacias, Ministério Público e Judiciário sobre a questão racial no Brasil, o racismo, a violência racista e a forma como essas questões operam de forma diferenciada sobre as mulheres negras e brancas, independentemente da classe social.”

Leia os principais trechos da entrevista:

HuffPost Brasil: A Lei Maria da Penha é reconhecida como um marco no combate à violência contra mulher no Brasil, mas apesar de estar em vigor há 13 anos, os resultados são diferentes para mulheres brancas e negras. A que fatores a senhora atribui essa diferença?

Nilma Lino Gomes: A diferença constatada pela pesquisa revela a situação de maior violência que incide sobre as mulheres negras e, na minha opinião, expressa o quanto as mulheres negras vivem em situação de maior perigo e de ausência de segurança nas sociedades machistas do que as mulheres brancas.

Segundo o Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil, entre 2003 e 2013, o número de homicídios das mulheres negras saltou de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Em contraposição, houve recuo de 9,8% nos crimes envolvendo mulheres brancas, que caiu de 1.747 para 1.576 entre os anos.

O racismo é um fenômeno perverso que autoriza as práticas de violência sobre os corpos negros e os escolhe como as suas vítimas preferenciais. Somado ao machismo e às desigualdades econômicas, o racismo se transforma em uma máquina de extermínio da população negra. E, no processo de extermínio, escolhe como suas principais vítimas aquelas que, no contexto das muitas desigualdades e opressões, se encontram em situação de maior destrutibilidade, a saber, mulheres, crianças e jovens. O Mapa da Violência atesta o que as mulheres negras ativistas têm denunciado historicamente.

Não basta realizar políticas de combate à violência contra as mulheres de forma universal, sem considerar como essa violência incide sobre as diferentes mulheres e formas de ser mulher na sociedade brasileira.

Essas políticas precisam e devem considerar aqueles coletivos, dentro da discussão de gênero, raça e desigualdades, que possuem um histórico de maior violência. Caso contrário, assistiremos o agravamento do quadro apresentado pelo Mapa da Violência 2015 [que apontou que, em dez anos, o assassinato de mulheres negras cresceu 54% no Brasil], ou seja, um diferencial negativo da situação das mulheres negras, em todas as áreas, quando comparadas às mulheres brancas.

De que modo falhas nas estruturas públicas, como delegacias, Ministério Público e Judiciário, impactam nessa questão? O que é preciso para melhorar esse cenário?

É importante considerar as dimensões estruturais da violência racista impregnadas na sociedade e suas instituições, ou seja, o racismo estrutural. Para melhorar esse cenário é preciso que as políticas públicas voltadas para as mulheres operem de forma conjunta e articulada com as políticas de superação do racismo e pela construção da igualdade racial. Ainda há um grande desconhecimento por parte das delegacias, Ministério Público e Judiciário sobre a questão racial no Brasil, o racismo, a violência racista e a forma como essas questões operam de forma diferenciada sobre as mulheres negras e brancas, independentemente da classe social a que pertencem. A violência racista e sexista opera em todas as classes sociais.

Embora a Constituição Federal ateste que o racismo é um crime inafiançável e imprescritível, as nossas instituições estão ancoradas no mito da democracia racial e no racismo institucional. Por isso, é tão difícil fazer justiça quando vivemos um crime de racismo. Muitos operadores jurídicos e as várias instituições e órgãos que deveriam zelar pela garantia da justiça, da lei e dos direitos se recusam a aceitar, enxergar e reagir aos casos de racismo.

Não basta a melhoria material, maiores recursos e condições de funcionamento das estruturas públicas se elas não se colocarem explicitamente como antirracistas.

Esse é um importante passo para que se garanta, de fato, plenos direitos à população negra, a qual possui na sua trajetória de vida e social um maior histórico de discriminação e exclusão. Porém, vivemos em um momento político de democracia em risco, no qual todas essas estruturas estão fragilizadas. Isso coloca também em risco todas as políticas e estruturas públicas de combate à discriminação racial e de gênero arduamente conquistadas e construídas em nosso País.

O Ministério da Justiça tem um grupo de trabalho sobre violência contra a mulher em que estão sendo estudadas medidas para melhorar a rede de atendimento. Ao mesmo tempo, a pasta nega que a liberação de armas possa ter um impacto de aumentar o número de feminicídios. Como vê esse posicionamento?

Acho temerário que o Ministério da Justiça desenvolva um grupo de trabalho para melhorar a rede de atendimento às mulheres sem a existência de dois ministérios importantíssimos e que foram extintos: A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretária de Políticas para as Mulheres (SPM).

Combater a violência que incide sobre as mulheres não é somente uma questão da justiça. Trata-se de uma questão em que perversamente se articulam a violência estrutural, as desigualdades, o racismo, o machismo e o patriarcado, que atingem de forma e intensidade diferenciadas as diversas maneiras de ser mulher na sociedade brasileira.

Essa articulação perversa atinge com maior crueldade as mulheres negras. E, se incluirmos as mulheres trans teremos um quadro ainda mais alarmante. Certamente, se atentarmos para as mulheres trans negras e pobres, a crueldade aumentará ainda mais. Isso me leva a indagar se, de fato, o grupo de trabalho criado tem como objetivo apresentar resultados e políticas eficazes no combate a essa violência.

É no mínimo incoerente criar um grupo de trabalho sobre violência contra a mulher no Ministério da Justiça e não considerar que a liberação de armas terá um impacto no aumento do número de feminicídios.

A liberação das armas colocará na mão dos agressores mais um instrumento de violência e opressão que poderá ser usado contra a mulher. E o que é pior, legitimado pelo Estado.

Em uma sociedade violenta como o Brasil, indago a quem se quer enganar com o discurso de que a liberação de armas garantirá a “legítima defesa”. Na realidade, a liberação aumentará as situações de violência contra os coletivos e segmentos sociais, de gênero e étnico-raciais que o próprio Estado deveria defender com políticas afirmativas de gênero e raça.

A pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça publicada pelo IBGE, divulgada no último dia 13, mostra que mulheres pretas ou pardas receberam, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), que ocupam o topo da escala de remuneração no País. O estudo também aponta desigualdades em cargos gerenciais, de desemprego e de distribuição de renda. Como esses fatores se relacionam com a vulnerabilidade da mulher negra em relação à violência?

O mercado de trabalho expressa não só desigualdade, mas também a violência. A pesquisa comprova que a desigualdade salarial possui um fundamento estrutural de raça, gênero e classe. Esse fundamento afeta a vida das mulheres negras que, conforme atestam os próprios dados, vivem uma situação de somatório de desigualdades e opressões.

Os dados constatam novamente as denúncias e alertas do Movimento de Mulheres Negras e do Feminismo Negro e exigem uma urgente intervenção democrática do Estado e de suas instituições. Exigem a urgente retomada e o incremento das políticas públicas voltadas para o trabalho e emprego que articulem a raça e o gênero. Mas, para isso, precisamos retomar o Estado democrático e de direito. Um Estado autoritário e conservador jamais se moverá em direção a garantia dos direitos.

A socióloga e pesquisadora da UFF, Christina Vital, afirmou, em entrevista ao HuffPost Brasil, que a agenda de combate à violência contra a população negra sumiu do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos neste ano. Ela aponta um alinhamento da ministra Damares Alves com um pensamento que chamou de “neoconservador”, de afirmação da identidade a partir de uma perspectiva universal que deixa de valorizar diferenças raciais ou de gênero, como se o combate ao racismo fosse uma pauta “de esquerda”. Como a senhora vê o impacto dessa perspectiva na elaboração de políticas públicas?

Basta fazer uma reflexão mais aprofundada para comprovar o quanto a ênfase em uma perspectiva universal que apaga a diversidade e as identidades têm sido a causadora de uma série de injustiças no mundo e no Brasil. Ela apaga não somente a existência das diferenças, mas desresponsabiliza o Estado no seu dever constitucional de implementar políticas de ações afirmativas que garantam direitos para os coletivos sociais, de gênero e étnico-raciais cujas políticas universais não conseguem atingir.

O histórico de desigualdades e violência do Brasil é imenso. Uma leitura mais aprofundada da nossa história social, cultural e política revelará o quanto, no contexto das relações de poder, determinados grupos e coletivos étnico-raciais e de gênero e orientação sexual foram sempre tratados de forma desigual. Por isso, a efetivação da democracia por meio de políticas de Estado, no Brasil, precisa contemplar o impacto da relação desigualdade e diferença na vida das pessoas.

Ao atribuir o combate ao racismo como se fosse uma pauta ‘de esquerda’, a ministra demonstra desconhecimento ou desconsideração com um histórico de lutas do povo brasileiro.

O combate ao racismo é um princípio constitucional. O racismo é crime inafiançável e imprescritível e essa afirmação consta na Constituição Federal, Capítulo V, inciso XLII. O Brasil também é signatário do Plano de Ação de Durban, assinado durante a IIIa Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada pela ONU, na África do Sul, em 2001.

Nesta conferência internacional o Estado brasileiro, por meio da sua diplomacia e diante das pressões dos movimentos sociais, responsabilizou-se pela implementação de políticas públicas de combate ao racismo.

Ao atribuir o combate ao racismo como se fosse uma pauta “de esquerda”, a ministra demonstra desconhecimento ou desconsideração com um histórico de lutas do povo brasileiro em prol da emancipação social, da democracia e da garantia de direitos (inclusive dos direitos humanos, tema da própria pasta por ela coordenada). Revela também o não cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo nosso País. Importante ressaltar que o combate ao racismo é uma política de Estado e não de governo.

A Marcha das Margaridas neste ano teve uma participação também de integrantes da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas. A senhora vê essa integração de diferentes movimentos de mulheres no Brasil?

Penso que estamos dando passos mais visíveis e efetivos para essa integração entre diferentes movimentos de mulheres no Brasil. Aos poucos, as forças emancipatórias começam a compreender que articular diferentes bandeiras de luta não apaga as nossas identidades, mas as fortalece. Podemos aprender umas com as outras sobre os pontos centrais de cada movimento e luta emancipatória. E não somente somar esforços, mas compreender, ser solidária umas com as outras, reconhecer os devidos protagonismos e formar uma resistência democrática mais sólida para enfrentar o pensamento neoconservador, o neoliberalismo exacerbado, o racismo, o machismo, o patriarcado, a LGBTfobia e a violência religiosa que se rearticularam contra os direitos democráticos e caminham lado a lado com a visão privatista de mundo, de Estado e de sociedade.

A senhora foi a primeira mulher negra do Brasil a comandar uma universidade pública federal. Como o cenário atual do ensino superior público no Brasil, com dificuldades financeiras, pode impactar o desenvolvimento de um País mais igualitário para mulheres negras?

Todo ataque às instituições democráticas e aos direitos resulta em um País menos democrático para todas e todos, principalmente para os setores em situação de maior desigualdade. Por isso, todo ataque a universidade pública resulta em aumento de desigualdades para as mulheres negras.

A universidade pública forma quadros que irão atuar no mercado de trabalho, na política, nos espaços de gestão, poder e decisão. São espaços nos quais se constata a existência do racismo e a sub-representação de negros e negras, em especial, de mulheres negras. Por isso, tudo o que afeta negativamente a universidade pública como, por exemplo, a falta de recursos, de condições de funcionamento, o cerceamento da autonomia e o impedimento do exercício da liberdade de cátedra incide negativamente na vida e na trajetória acadêmica e profissional das mulheres negras no ensino superior.

Apesar de a ministra Damares defender que se fale da Lei Maria da Penha nas escolas, há também um discurso que quer barrar questões de gênero na sala de aula, ligado ao movimento Escola sem Partido. Qual pode ser o impacto de o ambiente educacional discutir essas questões abertamente? 

As questões de gênero são sociais e não algo restrito a convivência familiar. Ao discuti-las, a escola básica e a universidade realizam a sua função educativa em sintonia com o mundo atual. No caso das crianças, adolescentes e jovens da Educação Básica é importante considerar que as questões de gênero são por eles/elas aprendidas não somente na família ou na escola. Hoje, a informação circula e chega com muito mais rapidez e as formas de acessá-la são diversas. Muitas vezes, as informações chegam distorcidas e tendenciosas. Por isso, a discussão sobre a questão de gênero realizada pedagogicamente na escola é um apoio às famílias e não uma “invasão”.

A proposta da Escola Sem Partido, na minha opinião, trata de forma leviana, inconsequente e ideologicamente orientada em uma postura fundamentalista, questões muito sérias e que devem ser discutidas de maneira crítica, pedagógica e responsável pelas instituições educacionais.

Em um mundo cada vez mais violento contra a mulher, com denúncias cada vez mais fortes de violência doméstica, assédio sexual, violência sexual contra as crianças e adolescentes, com o aumento dos assassinatos e violência contra a comunidade LGBTQI+, como poderia a instituição escolar deixar de discutir, de forma responsável, as questões de gênero?

Se realizamos pesquisas que nos apresentam dados sobre as desigualdades de gênero na sociedade e na educação das meninas e jovens, como poderia a escola do século XXI não intervir de forma afirmativa, esclarecendo dúvidas, orientando sobre as questões a respeito da sexualidade, compartilhando os direitos já conquistados pelas mulheres, contribuindo no fortalecimento da autoestima das meninas e jovens, construindo pontes de diálogos com os meninos e jovens sobre o seu dever ético e solidário para com as mulheres e desconstruindo o pensamento machista impregnado na nossa estrutura social de que as mulheres são inferiores aos homens.

O trato educativo da questão de gênero na escola é uma forma de intervir pedagogicamente na superação da visão machista que naturaliza para os meninos e jovens o lugar do agressor. É uma forma de indagar a heteronormatividade como única forma de expressão da sexualidade.

Por By Marcella Fernandes e Andréa Martinelli

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