Levantamento considerou quatro tipos de delitos cometidos de 2008 até o fim de 2018
(Folha de S.Paulo, 23/03/2019 – acesse no site de origem)
O número de registros de crimes sexuais ocorridos em metrôs, trens e outros meios de transporte público em São Paulo cresceu 265% em 11 anos, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública do estado obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação.
Para o levantamento, foram considerados quatro tipos de delitos cometidos de 2008 até o fim de 2018: ato obsceno, estupro, estupro de vulnerável e violação sexual mediante fraude. Ocorreram principalmente em meios de transporte rodoviário (577) e ferroviário (514).
Entre eles, o crime mais frequente no período foi o de ato obsceno, que somou 980 casos. Inclui, por exemplo, ações como exibir ou manipular órgãos genitais em público.
O estupro figura como o segundo crime com mais queixas. Foram 416 registros em dez anos —108 deles só nos últimos dois anos. Consiste no ato de constranger alguém a praticar ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça, o que inclui desde agarrar alguém a força até penetração sem consentimento.
Quanto a estupro de vulnerável, definido como a prática de ato libidinoso ou ter conjunção carnal com menores de 14 anos, foram 225 registros no período.
Houve também 106 pessoas que denunciaram violação sexual mediante fraude, quando um agressor engana a vítima para cometer a agr essão, oferecendo droga ou distraindo-a antes do abuso, por exemplo.
A secretaria registrou no período 42 casos de assédio sexual, mas, segundo o Código Penal, o crime se refere apenas a casos envolvendo relações de trabalho abusivas. A explicação da secretaria é que os agentes podem ter classificado crimes de importunação e adjacentes na rubrica. Mas, no decorrer da investigação, a tipificação provavelmente seria revista.
A mudança nas definições de alguns crimes sexuais previstos no Código Penal ocorrida em 2009 ajudam a explicar o aumento nos registros dos crimes, diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Pela redação anterior, apenas mulheres poderiam ser consideradas vítimas de estupro, enquanto agora não há restrição quanto ao gênero. E só casos em que houvesse conjunção carnal eram criminalizados. Já o estupro de vulnerável foi tipificado apenas em 2009 e viu seus registros saltarem de 2009 para 2010: foram de 3 para 20 casos, aumento de 567%.
A mudança na percepção das vítimas, principalmente mulheres, sobre a gravidade desses atos de violência também foi um fator importante para o aumento nos números, diz a antropóloga e pesquisadora da USP Beatriz Accioly Lins.
“O que antes era visto como uma inconveniência, uma chatice, agora é encarado como uma violação de direitos”, diz. “Houve um aumento na militância e nas discussões sobre os direitos femininos.”
Apesar do crescimento, a subnotificação ainda é alta. Estudos produzidos pelo Ipea estimam que apenas 10% dos casos de estupro sejam denunciados. “E é um dos mais graves. Imagina outros, classificados como importunação ou ato obsceno?”, diz Bueno.
Medo, vergonha e dificuldades no processo de registro da ocorrência desanimam as vítimas a prestar queixa.
Uma estudante de 22 anos, que não quis ser identificada, viveu um périplo para conseguir denunciar um homem que ejaculou em sua perna no início de fevereiro em um trem da linha 9-esmeralda da CPTM.
Notou que uma pessoa atrás dela mexia bastante as mãos. Parecia que buscava algum item nas sacolas que carregava. Até que sentiu um líquido em sua calça. Virou-se e viu o homem com o pênis para fora.
“Me senti impotente, fraca. Gritei, mas ninguém me ajudou. Ficaram todos imóveis”, conta. “Ali, percebi o quanto a mulher é inferiorizada. Eu era só uma escandalosa.”
Conteve o homem e, quando as portas abriram, funcionários da CPTM seguraram o agressor. Mas começaram a questioná-la sobre a veracidade da sua versão. “Você viu mesmo isso?” e “ Você tem provas? Ele está dizendo que são gotas de chuva” foram algumas das perguntas, segundo ela.
Esperou por cerca de duas horas e meia até ser levada a uma Delegacia da Mulher na zona oeste da capital. Conta que repetiu a história dezenas de vezes para funcionários da CPTM a caminho da delegacia. Na polícia, teve que esperar por algumas horas até que o boletim fosse feito —o caso foi registrado como importunação sexual.
A mulher continua andando de transporte público todos os dias. “Mas com muito medo. Nem cochilo mais. Até quando vou precisar ter um sensor de homens em volta do meu corpo, que deve estranhar cada movimento atípico?”, diz.
Em nota, a CPTM afirmou que a atuação dos funcionários está sendo analisada pelo comitê de ética da empresa e que, após a conclusão das apurações, serão tomadas as medidas cabíveis.
É comum que a vítima tenha que repetir várias vezes a mesma história, como aconteceu com a jovem no trem, diz a delegada Renata Cruppi, titular da delegacia da Mulher de Diadema, o que piora o sofrimento. “E não cabe a quem dá ajuda questionar a verdade. Quem vai investigar é a Polícia Civil”, afirma.
Para Accioly, a violência contra a mulher tende a ser tratada como algo menos importante do que um roubo ou furto no transporte coletivo. “As pessoas acham que ela fez por merecer”, diz. “Deve haver um processo de esclarecimento e reciclagem. Ninguém sabe, de forma espontânea, como atendê-la. A sociedade está despreparada para lidar com isso.”
Com o objetivo de incentivar denúncias, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em parceria com instituições públicas e privadas, entre elas o governo do estado, lançou em 2017 a campanha Juntos Podemos Parar o Abuso Sexual nos Transportes.
Segundo a promotora Fabíola Sucasas, do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, mais de mil agentes e funcionários de estações de transporte público foram treinados no âmbito da campanha para lidar com abusos sexuais.
Explicaram o que é considerado violência sexual, como as vítimas devem ser atendidas e o que fazer com o agressor.
“Ainda falta capacitação e uma articulação em rede entre os serviços de atendimento para que os números saiam da esfera da subnotificação”, diz. “E não adianta dar só voz à vítima, é preciso ouvi-la. O sistema deve garantir que a sua palavra seja considerada e que ela não seja culpabilizada.”
Outras iniciativas foram lançadas para combater o assédio em ônibus, metrôs e trens. A campanha Chega de Fiu-Fiu, lançada pelo coletivo feminista Think Olga em 2013, foi uma delas. Gerou grande repercussão nas redes sociais e levou vítimas a compartilharem suas histórias de violência.
As testemunhas do assédio também têm papel relevante. “Só vamos mudar a situação quando os usuários de transporte se indignarem e ajudarem a vítima a tomar uma atitude”, diz Cruppi.
Mais do que conscientizar as vítimas e as pessoas em volta e treinar os agentes que irão atendê-las, é importante é dedicar esforços a mudar o comportamento dos homens, dizem especialistas. “Temos que reconfigurar o conceito de masculinidade, desde a escola, em todos os espaços”, diz Sucasas.
Pesquisa realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em fevereiro, mostrou que 8% das mulheres entrevistadas relataram ter sido vítimas de assédio em meios de transporte coletivo no último ano.
Quem for vítima de crime sexual em um coletivo deve buscar ajuda de seguranças da estação ou ir até uma uma autoridade policial o mais rápido possível, orienta Cruppi.
Não é preciso passar muitos detalhes sobre a abordagem: o número do ônibus ou a linha do metrô e características do agressor já ajudam. “Muitas acham que não vai dar em nada, que estavam sozinhas e não houve testemunhas”, diz. “Mas, com um mínimo de elementos, é possível identificar o criminoso.”
O Metrô de São Paulo afirmou, em nota, que conta com mais de 3.000 agentes treinados para acolher vítimas. Oferece um aplicativo de celular, chamado Metrô Conecta, e um serviço de denúncia por mensagem de texto por meio dos quais passageiros podem enviar relatos de ocorrências. Dizem que, em 2018, receberam 101 denúncias de importunação sexual no sistema metroviário.
A SPTrans orienta que vítimas procurem imediatamente o motorista e diz que realiza campanhas preventivas, inclusive com cartazes em ônibus e terminais, para combater o abuso nos coletivos. A empresa afirma que a questão do abuso sexual é tratada durante a capacitação dos funcionários.
Já a CPTM afirmou que faz campanhas nas redes sociais e por meio de mensagens sonoras nos trens e estações para incentivar a denúncia de irregularidades e que mantém uma equipe de segurança que realiza rondas tanto com uniforme quanto à paisana para coibir crimes. A empresa oferece também um serviço de denúncia por mensagem de texto.
Daniel Mariani e Júlia Zaremba