Comunidades e mulheres precisam ser empoderadas para evitar novas epidemias, diz representante da ONU

21 de julho, 2016

(Marina Pita e Marisa Sanematsu, 21/07/2016) Jaime Nadal é, desde julho de 2015, o novo representante para o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil. Nadal tem 20 anos de experiência no Sistema das Nações Unidas, com uma diversificada bagagem relacionada a políticas populacionais, saúde sexual e reprodutiva e direitos. Mestre em demografia, atuou como representante dos Escritórios do UNFPA na Bolívia e no Egito, entre outras responsabilidades. Atuando desde sua chegada nas questões envolvendo as comunidades brasileiras e a emergência de saúde global por conta da síndrome congênita decorrente da infecção por zika, Nadal reforça a importância de o país ter, além das respostas imediatas, planos de médio e longo prazos que envolvam as comunidades para que estas possam exigir políticas públicas adequadas e de qualidade. Em relação ao Estado, avalia que é importante a manutenção das políticas de educação para a cidadania, que podem corroborar para corrigir problemas estruturais e estruturantes do Brasil.

Agência Patrícia Galvão Como o senhor avalia a resposta ao zika no Brasil? 

Jaime Nadal UNFPA

Jaimel Nadal, representante do UNFPA no Brasil, em visita à sede do Instituto Patrícia Galvão (Foto: Marina Pita)

Jaime Nadal – Acho que o país tem reagido de um jeito importante no curto prazo. O país tem presenciado um surto epidêmico, gerado por um mosquito, um vetor – da zika, dengue e chikungunya. Mas acho importante ter também um plano de médio e longo prazos. O Brasil tem experimentado surtos epidêmicos gerados também por mosquitos no passado e eu gostaria de relembrar a apresentação que o Valcler [vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Valcler Rangel Fernandes] fez na segunda sala de situação. Ele apresentou o mapa do surto de filariose no Brasil, em 1996, e quando comparou com o mapa do surto do zika, agora em 2016, eram praticamente idênticos.

Agência Patrícia Galvão E o que estes mapas representam?
Jaime Nadal – A nossa preocupação tem a ver com a possibilidade de, no futuro, termos outro surto epidêmico, de uma outra coisa que talvez não esteja relacionada com o vírus zika, mas vá surgir pelas condições estruturais e estruturantes da sociedade. E isso tem a ver com direitos humanos básicos, à saúde, à habitação, à educação – educação ambiental, neste caso -, empoderamento das comunidades e das mulheres e, em particular, o direito à saúde sexual e reprodutiva e a capacidade de as mulheres terem autonomia reprodutiva.

Agência Patrícia Galvão O momento que estamos vivendo evidencia realidades nem sempre tão presentes no centro urbano das grandes cidades?
Jaime Nadal – Acho que o surto coloca em evidencia o fato de que muitas mulheres não se identificam como sujeitos de direitos. As comunidades têm sido mobilizadas para lutar contra o mosquito, mas até que ponto elas têm sido mobilizadas para reclamarem acesso a serviços de saúde, serviços para garantia do direito à saúde sexual e reprodutiva e aconselhamento sobre saúde sexual e reprodutiva para tomarem decisões informadas, corretas, para reduzir o grau de ansiedade que está alto entre as mulheres, especialmente entre as mais jovens e mais vulneráveis, as mais pobres, que vivem mais na pobreza e que coincidem também com o recorte de raça e cor.

Agência Patrícia Galvão Como o UNFPA vê seu papel e atuação em relação a essas questões de longo prazo?
Nadal – O UNFPA tem trabalhado com o Ministério da Saúde até certo ponto e com as secretarias de Saúde e das Mulheres em Pernambuco e também com organizações da sociedade civil para fazer um vínculo com as comunidades, porque essas preocupações nem sempre têm sido articuladas adequadamente. Às vezes a própria comunidade não tem essa noção de si mesma, como sujeito de direitos, como ator político, político em termos de poder interagir com as autoridades públicas, para reclamar seus direitos sexuais e reprodutivos para acessar os serviços e solicitar aconselhamento. Este é um trabalho que temos feito nas comunidades com várias organizações da sociedade civil, tanto em Pernambuco como na Bahia. Temos trabalhado com a Secretaria de Saúde e das Mulheres para que o pessoal da saúde também tenha as informações que possam aportar para as mulheres lidarem com esse nível de ansiedade e de estresse, dando resposta a esse processo de empoderamento da comunidade e reforçando a noção de autonomia reprodutiva dessas mulheres.

Agência Patrícia Galvão Quais desafios a transmissão via sexual do zika adiciona neste contexto?
Nadal – Agora, com a confirmação da transmissão sexual do zika, é muito importante que possamos transitar da autonomia reprodutiva à autonomia sexual das mulheres, porque estamos falando que elas têm que ter a capacidade de dizer quando e com quem ter relações sexuais e dispor também dos meios para se proteger. Nós advogamos pelo uso do preservativo como método de barreira, seguimos as recomendações da Organização Mundial da Saúde, e vamos além dessas recomendações, que são apenas para as mulheres que ficam grávidas: a recomendação iria para todas as mulheres e para todos os homens. Essa é uma recomendação para uso consistente e sistemático do preservativo.

Agência Patrícia Galvão – E o senhor falou do enfrentamento às epidemias no longo prazo. Como devem ser as ações neste sentido?
Nadal – Se quisermos ter um olhar no longo prazo, precisamos lidar com as questões estruturais e estruturantes. E estamos falando de saúde ambiental, acesso a saneamento, acesso também a educação e habilidades para a vida. Quando uma situação do surto de zika acontece em uma sociedade, todo o tecido social se ressente e é muito importante ter um olhar de resiliência sobre isso. A sociedade tem que ser resiliente frente a uma situação como essa. É importante trabalhar com o setor saúde, mas também com o setor de educação, para transformar a realidade e as habilidades das pessoas e das comunidades. E é muito importante trabalhar com as autoridades responsáveis pelos temas de saneamento público, o Ministério das Cidades. É preciso que essas falências estruturais, a falta de planejamento urbano que tem permitido o surto epidemia, também sejam resolvidas no longo prazo. Por mais que agora se lute contra o mosquito, se não resolvermos esses temas, tenho medo que daqui 15 ou 20 anos tenhamos outro surto epidêmico, como tivemos em 1996, com a filariose. É importante não perder isso de vista no longo prazo.

Agência Patrícia Galvão – As mudanças demográficas dos últimos anos aumentaram as chances de epidemias como as de zika surgirem?
Nadal – Esses determinantes sociais têm muito peso e também há o aquecimento global, a revolução no transporte – é muito simples viajar de um continente a outro, de um país a outro -, você vê como o zika se iniciou em Uganda e passou à Micronésia Francesa e aí passou para o Brasil e já está em três continentes. Se não resolvermos esses problemas estruturais e estruturantes, e não trabalharmos nas determinantes sociais, o que vai acontecer é que os fatores ambientais vão promover um maior risco de vulnerabilidade a estes surtos epidêmicos e, para isso, precisamos desse olhar estrutural.

Agência Patrícia Galvão – O senhor trata muito desta questão da ação da própria comunidade para responder à epidemia. Por que?
Nadal – Uma coisa que nos tem chocado é a não identificação dessas comunidades como sujeitos de direitos e, se não existe essa noção, não há noção de cidadania e não se torna um sujeito político. Isso limita muito a capacidade dessas comunidades de reclamar frente às autoridades públicas. De certa maneira fica naturalizado que as crianças não vão à escola, que o serviço de saúde seja deficiente. Não necessariamente limitado, mas deficiente, que não atinja o grau que elas gostariam em termos de qualidade, por exemplo. É preciso mudar essa cultura para que passem a reclamar a cidadania. E as únicas pessoas que podem fazer isso são elas mesmas, através desse processo de identificação como sujeitos de direitos. O UNFPA e outras organizações que atuam no nível comunitário têm feito este trabalho, tratando de ter essa abordagem, mas é importante que essa resposta também seja apropriada pelos poderes públicos, porque é parte da responsabilidade do Estado pois faz parte dos direitos da cidadania.

Agência Patrícia Galvão – E isso está acontecendo?
Nadal – O zika pode ser uma oportunidade nesse sentido, para construir cidadania, se tirar o foco só do mosquito e jogar o foco também nas mulheres. As mulheres são as mais vulneráveis à epidemia – temos alguns relatórios que indicam que as mulheres ficam mais vulneráveis à infecção porque passam mais tempo em casa. Mas a verdade é que o risco social é muito maior também: de perder a fonte de renda, de ficar em casa, no cuidado das crianças que podem ter síndrome congênita do zika. Essas mulheres podem perder essa autonomia que tanto custou atingir e que, de fato, ainda não está consolidada, como o próprio surto de zika tem provado. Este tem sido um dos grandes progressos do século 20 e 21 e estamos sob risco de dar um passo atrás, colocando as mulheres em situação de grande vulnerabilidade social e isso temos que evitar.

Precisamos também falar do estigma contra a mulher como um dos fatores que podem também coadjuvar a infecção do zika. quando você faz uma leitura do que os meios de comunicacao têm colocado sobre a infecção de zika: você vê uma negatividade muito significativa no tratamento. Por que a mulher engravidou quando não deveria ter engravidado? Por que a mulher decidiu levar adiante a gravidez? Ou, por que a mulher decidiu não levar ao final a gravidez? Não importa qual seja a decisão da mulher, ela será estigmatizada, em muitos meios de comunicação.

Agência Patrícia Galvão – Como é a situação das mulheres brasileiras em termos de direitos sexuais e reprodutivos?
Nadal – A última Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde, de 2006, indicou que aproximadamente 40% das gravidezes eram não desejadas no Brasil. Mas, além disso, 6% das mulheres em idade reprodutiva tinham demanda insatisfeita de planejamento da vida reprodutiva. Considerando que no ano de 2015, este percentual seja o mesmo (infelizmente não temos uma pesquisa de 2015 ou 2016), estamos falando de mais de 4 milhões de mulheres que gostariam de fazer uso de métodos de planejamento da vida reprodutiva e não estão fazendo por questões que têm a ver com qualidade, acessibilidade, custo, informação e até empoderamento. Isso para mim é um tema fundamental na resposta ao zika. As mulheres têm seus direitos sexuais e reprodutivos desprotegidos e, de novo, o surto do zika deveria ser mais uma chamada para tratar de resolver essa situação.

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