(Regina Soares Jurkewicz, para o Jornal Carta Forense) Falar em aborto significa tocar em um tema que tem relação direta com os direitos individuais e ao mesmo tempo com a construção de sociedades democráticas. Talvez essa seja uma das questões éticas que mais tem impactado e questionado os/as brasileiros/as nos últimos anos.
Posicionar-se favoravelmente frente à legalização do aborto implica considerar e respeitar simultaneamente direitos sociais e individuais. A lei deve garantir aos/às cidadãos/ãs os direitos previstos em nossa Constituição, assegurando o exercício da liberdade, um dos direitos mais reconhecidos na história moderna.
A questão não é ser favorável ao aborto, mas favorável à sua legalização. No entanto, o progresso de uma legislação que contemple o direito ao aborto tem sido fortemente prejudicado pelo desrespeito à laicidade do Estado. Já há alguns anos observa-se o surgimento de iniciativas no Legislativo destinadas a promover os direitos sexuais e direitos reprodutivos e a descriminalização do aborto. Em geral essas iniciativas surgem da parceria de organizações feministas com parlamentares que têm em seu horizonte a equidade de gênero, a construção de sociedades democráticas, pluralistas e inclusivas.
Ao mesmo tempo, segmentos conservadores tentam impedir esse processo, sobretudo setores das igrejas Católica e Evangélica que constituem ou apoiam grupos autodenominados “próvida”. Tais grupos defendem a criminalização do aborto em qualquer situação, mesmo naquelas em que o aborto não é punido no Brasil: risco de vida da gestante, gravidez como consequência de estupro e agora, também nos casos de comprovada gravidez de fetos anencefálicos.
O que pensamos como mulheres católicas é que criminalizar o aborto não favorece ninguém. Ao contrário, provoca um maior número de abortos clandestinos e inseguros, condenando à morte muitas mulheres que tomam a decisão de abortar. A criminalização do aborto é uma política a favor da morte que não pode ser defendida coerentemente por ninguém que afirma defender a vida. Com ou sem leis restritivas, as mulheres seguem recorrendo ao aborto frente a uma gravidez indesejada. As políticas de criminalização do aborto, o único que fazem é com que as mulheres pobres, entre as quais a maioria é negra, se submetam a abortos inseguros, em condições insalubres. Provocam sequelas: lesões dos órgãos genitais, infecções, hemorragias, perfurações do útero, esterilidade, incontinência etc. Por outro lado, a criminalização do aborto, fomenta a existência e a proliferação das clínicas clandestinas frequentadas por mulheres de classe média ou alta.
Entendemos que os argumentos do bom senso, da busca de justiça social, do esforço por construir políticas públicas de qualidade no campo da saúde sexual e reprodutiva, do respeito à capacidade ética dos seres humanos, são suficientes para concluir que o Brasil será um país melhor, quando legalizar o aborto e diminuir a mortalidade materna.
Por essa razão afirmamos que prioritariamente este é um debate aberto, no qual circulam posicionamentos antagônicos, frequentemente influenciados pelo viés religioso. Entretanto, muitas vezes as motivações religiosas não são transparentes, estão ocultas e mascaradas por um discurso que se diz calcado na ciência. Isso ocorre porque os atores políticos que defendem posições doutrinárias e dogmáticas neste cenário, não têm a força e a racionalidade necessária para desenvolver uma argumentação coerente. Sua força não está no diálogo, mas no confronto, na agressão, nas atitudes que geram constrangimento e num discurso pseudocientífico. Como afirma Sílvia Pimentel, doutora em Filsofia do Direito: Um processo civilizatório e humanista pressupõe o livre diálogo de ideias. Um debate respeitoso e construtivo sobre o tema exige sutileza intelectual, delicadeza de espírito, altruísmo e generosidade.
Eis um exemplo claro e atual:
Há setores religiosos que não aceitam que uma mulher grávida de um feto anencefálico (sem cérebro), interrompa a gravidez, se for seu desejo, mesmo sabendo que o fruto desta gravidez nascerá morto ou com poucas horas de vida. Trata-se de um feto inviável, que comprovadamente não tem chances de sobreviver. Podemos imaginar o tamanho do sofrimento desta mulher? Não estamos nos referindo a crianças que nascem com defeitos físicos ou mentais, mas sim aos fetos que não terão vida fora do útero materno. Neste caso a falta de lógica e de compaixão daqueles que defendem a criminalização do aborto fica escancarada.
Se não bastassem os argumentos da razão e do respeito à vida das mulheres, e por isso, tivéssemos que considerar a argumentação religiosa, recordamos que um dos princípios fundamentais advindo da tradição cristã é o recurso à própria consciência. Princípio irrenunciável, inscrito na mais antiga doutrina cristã: diante de situações de difícil decisão, o último recurso é a própria consciência. Por que não reconhecer a capacidade ética das mulheres para tomar suas decisões?
O aborto não é praticado sem dor e sofrimento, não se trata de um gosto, de uma frivolidade. Muitas vezes é o último recurso encontrado, feito nas piores condições e pondo em risco a vida das mulheres.
O núcleo material de uma cultura patriarcal é o controle do corpo das mulheres. E a base desse núcleo é o controle de sua capacidade reprodutiva. É sobre esse eixo que se levanta o edifício social e simbólico do patriarcado. Ampliar os direitos reprodutivos das mulheres dá a elas maior autonomia, debilitando o núcleo patriarcal de dominação e as bases simbólicas de poder das hierarquias religiosas conservadoras.
A condenação do aborto na igreja católica é tema de ordem disciplinar, não é um dogma, ainda que seja, em geral, tratada assim pela hierarquia eclesiástica. Por essa razão é aceitável e desejável que cristãos/ãs reflitam sobre o tema. Mas é fundamental para a vida democrática do nosso país e para a preservação da laicidade do Estado, que não sejam os argumentos religiosos a definir a elaboração das leis no Congresso Nacional.
Acesse em pdf: Aborto: posição favorável, por Regina Soares Jurkewicz (Jornal Carta Forense – 03/05/2012)