Surgem diversas iniciativas para pensar a subrepresentação nas próximas eleições: de cursos de formação a pesquisa sobre presença feminina em Prefeituras. Para especialistas, problema não é de gênero, mas da própria democracia
(Outras Palavras, 21/06/2019 – acesse no site de origem)
A igualdade entrou em campo para vencer. A chuteira exibida pela nordestina Marta Vieira da Silva, artilheira 10 da seleção brasileira de futebol com recorde absoluto em gols de Copas do Mundo – uma chuteira preta, com rosa e azul em partes iguais nas laterais e sem patrocínio – é só o sinal mais visível do florescimento da consciência e determinação das mulheres em assumir o protagonismo na condução de suas vidas e dos destinos do país.
Mas há outros. Sementes, o filme, retrata o levante político de mulheres negras gerado pela execução de Marielle Franco em março de 2018, ainda impune,#QuemMandouMatarMarielle?, e acompanha a corrida eleitoral de seis candidatas no Rio de Janeiro aos cargos de deputada estadual e federal. Em São Paulo, um curso gratuito de formação política para 60 mulheres teve procura surpreendente e está bombando no estado. Já sabemos quem são e quais os maiores problemas das prefeitas brasileiras, cujo perfil acaba de ser traçado por um grupo de pesquisadoras do Rio de Janeiro. Um estudo em andamento mapeia as inovações políticas de mulheres em cargos eletivos no Brasil e outros cinco países da América Latina.
As mexicanas acabam de conquistar a paridade de gênero em todos os cargos públicos. No México, a paridade no Parlamento já era obrigatória e as deputadas são 48,6%. Já no Brasil fala-se, inclusive, em acabar com as cotas para candidaturas femininas. Dos mais desiguais na América Latina e no mundo, o Brasil ocupa o 152° lugar em participação das mulheres em cargos eletivos federais dentre 172 países ranqueados pela IPU (Inter-Parliamentary Union). Negros e indígenas são ainda mais sub-representados. Somente 13,5% dos vereadores e 12% dos prefeitos são mulheres,.
Contudo, em 2018, 30 anos do nascimento da Constituição cidadã, elegemos 77 deputadas federais, maior número da história, ampliando de 11% a 15% a presença feminina no Congresso. O número de jovens, negras, pobres e LGBTs aumentou significativamente. Joênia Wapichana é a primeira deputada federal indígena, eleita por Roraima. Em São Paulo, Erica Malunguinho tornou-se a primeira deputada estadual transexual.
O trabalho solitário e sem pagamento de reprodução social, relegado quase exclusivamente às mulheres, é por certo uma das razões dessa sub-representação. Já empobrecidas por salários inferiores, gastamos mais de 20 horas semanais cuidando da casa e da família, duas vezes mais que nossos pares, socialmente liberados da obrigação de cuidar e liberados para dedicar-se à “verdadeira” política.
Como diz Ada Colau, prefeita de Barcelona, na Espanha.
“Este é o século das cidades e das mulheres. O feminismo tem a ver com o municipalismo: propõe que as mudanças sejam produzidas na esfera da vida. O pessoal é político. A política patriarcal se ocupava da macropolítica e ignorava toda a questão dos cuidados e da reprodução. A maior parte de nossas vidas permanecia invisibilizada e nas mãos das mulheres, porque os homens ficavam na política de verdade. Esse sistema está claramente em crise”.
A fala de Ada Colau, que recentemente reeleita, sugere que há muito jogo à frente. De fato, é planetária a luta das mulheres: uma revolução permanente e internacional.
Brasilianas
A virada ferve no caldeirão. O Curso de Formação de Mulheres na Política, criado na raça e sem financiamento por jovens gestoras de políticas públicas da USP, recebeu 700 inscrições para as 60 vagas oferecidas. Mulheres de 15 a 68 anos, filiadas a 15 diferentes partidos e não filiadas a partido nenhum, muitas negras e/ou LGBT’s, de 40 municípios do estado de SP, com grande diversidade de interesses. Dentre elas há quem queria apoiar campanhas femininas em 2020; quem deseje adquirir formação; quem queira aprender mais sobre mulher e política em razão do ofício de advogada, professora, jornalista. Mulheres que pretendem candidatar-se, mulheres que já se candidataram, assessoras políticas que (ainda) não pensam em ser candidatas.
“Elegemos ano passado mulheres de variados perfis e queremos justamente mostrar isso no curso, que existem diferentes trajetórias, formas de atuação, e que mulheres podem ser elas mesmas e estar na política institucional ao mesmo tempo”, afirmam as criadoras da Iniciativa Brasilianas no artigo Começando a virar a mesa: a pequena-grande transformação da formação política feminina.
Flávia Batista, Tamara Crantschaninov e Thaisa Torres, acadêmicas e ativistas, acreditam que um espaço de formação, rede e assistência às mulheres que se dispõem a entrar na política tem imenso potencial de alavancar candidaturas femininas em 2020.
“Política é um ambiente desgastante. Para mulheres, que normalmente já são menos remuneradas no ambiente de trabalho, possuem jornadas de trabalho dupla ou tripla, com afazeres domésticos e familiares, a política se torna ainda mais desigual e cansativa. Soma-se então a violência de gênero, praticada por homens que não aceitam que a política não é território exclusivo deles. Se a mulher é jovem, ou negra, ou lésbica, por exemplo, enfrentará ainda mais preconceito e violência no ambiente político”.
Frente à intensa demanda, as Brasilianas trabalham na gestação de mais ações. Gravam o curso – nove encontros semanais de maio a julho – e até agosto vão disponibilizar os melhores momentos online. Com um pequeno edital que acabam de vencer vão realizar o evento Mulheres no Poder, aberto e gratuito, em São Paulo, agora em julho. Aguardem.
“Queremos que estas sessenta mulheres se transformem em seiscentas, seis mil. E que todas elas tenham condições de empreender campanhas a cargos políticos em pé de igualdade com homens. Que se elejam e revolucionem a política da mesma forma como tem nos revolucionado todas as quintas-feiras”.
Emergência Política Mulheres
Pois é bem essa ideia que orienta o projeto Emergência Política Mulheres, que está entrevistando parlamentares do México, Colômbia, Brasil, Bolívia, Chile e Argentina, nessa ordem, além de estudiosas sobre mulher e política para retratar as transformações no poder criadas pelas mulheres ao ingressar na política.
“Nas últimas semanas estivemos na Colômbia, segunda parada da nossa pesquisa #EmergênciaPolíticaMulheres. Entrevistamos 18 mulheres, entre senadoras, deputadas, vereadoras e candidatas – este é ano de eleições locais no país. São muitas histórias de vida e de política que se misturam, desde fazer parte da guerrilha armada, de ter o pai candidato à presidência assassinado, de ser chamada de ge ser assistente de doutor. Lindo é poder escutar como essas mulheres estão ocupando esses espaços na política e lutando para que cada uma de nós possa ter seus direitos garantidos, principalmente nossos direitos políticos”, dizem, sorriso rasgado, Beatriz Pedreira, Rosa Tcmf, Jonaya de Castro e Isadora Brant, recém chegadas. “Estamos juntas. E estamos listas!”.
Começaram pela Cidade do México, onde aportaram justo no dia da promulgação da lei da paridade. “Essa reforma, que foi aprovada [em 23 de maio] por unanimidade, contou com uma articulação integrada de todas as congressistas mexicanas, de diferentes partidos e campos políticos, mas unidas por uma mesma agenda: igualdade entre mulheres e homens no exercício do poder público. Esse é só o primeiro passo! E que inspire mulheres em toda a América Latina! “, escreveram de lá. Seguem agora por Brasil, Chile, Bolívia e Argentina para realizar o total de 120 entrevistas em profundidade com mulheres em cargos eletivos e estudiosas da história. O projeto é coordenado pelo Instituto Update.
O mapeamento desse campo político foi construído em parceria com instituições de cada país e no Brasil teve colaboração do Gênero e Número e do Instituto Alziras.
Uma sinergia mostra o vigor dessas diversas ações e potencializa os esforços de cada uma delas. Por exemplo: o Alziras, cuja missão é contribuir para o aumento da representação feminina na política, compartilhou sua experiência com o Update e também com o curso da Brasilianas. Vão assim formando massa crítica para um novo imaginário político que emerge. Inclusivo. Coletivo. De bem comum.
Os resultados do estudo serão divulgados no final de 2019 num relatório da pesquisa, documentários e outros produtos audiovisuais em parceria com a GloboNews e Quebrando o Tabu, entre outras. Antes de focar nas mulheres como novo paradigma na política representativa o Instituto Update já investigou inovação política nas periferias e na América Latina.
Alziras
Visões do futuro e reavivamento do passado. Três anos antes da conquista do direito ao voto pelas mulheres brasileiras Alzira Soriano de Souza, 32 anos, viúva e mãe de quatro filhas, ousou lançar-se à vida pública e, apoiada pelo movimento sufragista liderado pela cientista Bertha Lutz, foi eleita a primeira prefeita do país no município de Lajes, no Rio Grande do Norte, com 60% dos votos válidos. Tomou posse em 1929 e, como na marchinha carnavalesca que Chiquinha Gonzaga compusera 30 anos antes, abriu alas para as mulheres que vieram a seguir.
“A luta de muitas gerações permitiu que as mulheres brasileiras conquistassem o direito de votar a partir da década de 1930”, sustentam Cintia Melchiori, Clara Carolina de Sá, Marina Barros e Michelle Ferreti, criadoras do Instituto Alziras. Recordam a médica Carlota Pereira de Queiroz, primeira mulher a se eleger deputada federal no Brasil em 1934; Antonieta de Barros, primeira parlamentar negra do Brasil, eleita deputada estadual em Santa Catarina em 1935; a participação das mulheres na Constituinte de 1988; a presidente impedida Dilma Rousseff.
É nesses pontos de luz do passado que se inspiraram para ir a campo investigar quem são e como trabalham as prefeitas brasileiras. O retrato está no estudo Perfil das Prefeitas no Brasil (2017-2020), realizada entre maio e julho de 2018 com orientação das pesquisadoras Flavia Biroli, da Universidade de Brasília, Wania Santana, da PUC-RJ e Wasmália Bivar, presidente do IBGE entre 2011 e 2016.
O estudo revelou que, embora somem 51% da população, mulheres governam somente 12% das 5.570 cidades brasileiras, num total de 7% das almas do país, e 91% foram eleitas em municípios com até 50 mil habitantes. Mulheres negras são 27% da população e governam apenas 3% das prefeituras. As prefeitas são geralmente ligadas às áreas de assistência social, educação e saúde, e 71% delas têm curso universitário. Enfrentam enormes desafios: 53% já sofreram assédio ou violência política; 48% enfrentaram falta de recursos para campanha; 30% encararam assédio e violência simbólica no espaço político; 24% tiveram pouco espaço na mídia, em comparação com políticos homens; 23% enfrentaram desmerecimento de seu trabalho ou de suas falas; 22% sofreram por falta de apoio do partido e/ou base aliada; 22% arcaram com sobrecarga de trabalho doméstico, dificultando a participação na política.
“As mulheres que arriscam se lançar à carreira política encaram uma série de barreiras que vão desde uma divisão desigual de tarefas domésticas no âmbito privado, passando pela falta de apoio intrapartidário para acessar recursos de campanha, até dificuldades no exercício do mandato, onde se espera que tenham uma atuação circunscrita a temas ditos “femininos”, tendo que reafirmar sistematicamente o lugar de eleita e capaz”, afirmam as criadoras do Alziras. “Na mídia, a exposição das mulheres na política resvala, muitas vezes, para o escrutínio de características físicas e comportamentais, dando destaque para penteados, vestidos e tantos estereótipos de gênero como o que assistimos durante o processo de impeachment da primeira mulher eleita para comandar a presidência do Brasil”.
“Não se trata de um problema das mulheres, trata-se de um problema da democracia”, como disse Flávia Biroli no lançamento do estudo no Rio de Janeiro. Simples assim.