Mesmo em sistemas eleitorais competitivos e relativamente inclusivos, nos quais a clivagem do eleitorado no que se refere a “raça” não é tão forte, a democracia formal pode conviver com desigualdades persistentes em termos de representação política, privilegiando candidatos “brancos” em detrimento de “não brancos”, e configurando aquilo que, em sociologia, recebeu o nome de “pigmentocracia”.
(Agência Fapesp, 25/07/2017 – acesse no site de origem)
Esta foi a conclusão de um estudo conduzido pelos cientistas políticos Natália Salgado Bueno e Thad Dunning e apresentado na “Escola São Paulo de Ciência Avançada em Metodologia em Ciências Humanas”, realizada na Universidade Estadual de Campinas, com apoio da FAPESP.
Bueno bacharelou-se em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); fez seu mestrado na Universidade de São Paulo (USP), com apoio da FAPESP; e está concluindo seu doutorado na Yale University, nos Estados Unidos.
O estudo em pauta, apoiado por Yale, foi objeto do artigo “Race, Resources, and Representation: Evidence from Brazilian Politicians”, publicado por Bueno e seu orientador, Thad Dunning, na revista World Politics.
“A disparidade racial entre cidadãos e seus representantes é especialmente notável na América Latina, onde narrativas sobre a ‘democracia racial’ celebram a harmonia étnica, a integração e a miscigenação. Mesmo que haja boas razões para sermos céticos em relação a esses relatos – muitos deles ratificam o poder da minoria branca enquanto mascaram o racismo –, os estudiosos apontam a falta de fortes limites sociais baseados em ‘raça’. Mas, no Brasil, onde a maioria da população se autoidentifica como ‘negra’ (‘preta’ ou ‘parda’), os políticos em muitos níveis do governo são desproporcionalmente ‘brancos’”, escreveram Bueno e Dunning em seu artigo.
Em 2014, enquanto a parcela que se autoclassificava como “negra” (“preta” ou “parda”) somava mais de 53% da população, os “negros” compunham menos de 25% dos políticos eleitos em todo o território nacional para os cargos de governador, senador, deputado federal e deputado estadual [Os dados sobre a população são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, e as informações sobre os políticos eleitos, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)]. “Nosso estudo procurou investigar as causas dessa discrepância de atributos de ‘raça’ e ‘cor’ entre os eleitores e os eleitos”, disse Bueno à Agência FAPESP.
O estudo utilizou dados das eleições de 2008, 2010 e 2014. Como apenas nas eleições de 2014 o TSE passou a coletar as autoclassificações dos candidatos em relação a “raça” e “cor”, uma primeira dificuldade da pesquisa foi obter esse dado nas eleições anteriores, considerando que “raça” e “cor” são construções sociais e não determinações biológicas. “Para identificar os candidatos ‘negros’ nas eleições de 2008 e 2010, o que fizemos foi recorrer à chamada ‘alterclassificação’ ou ‘classificação por outro’. Para isso, distribuímos fotos de cerca de 5.500 políticos a aproximadamente 1.000 classificadores, e cada foto foi classificada em média três vezes”, informou a pesquisadora.
Quando contabilizou o conjunto dos candidatos, isto é, os eleitos e os não eleitos, Bueno verificou que a discrepância dos não eleitos era menor do que a esperada. Ao contrário do que acontece na distribuição dos candidatos por gênero, em que as mulheres já competem em porcentagem muito menor do que os homens, a porcentagem dos negros entre os candidatos não é tão diferente daquela registrada no conjunto da população. O problema se evidencia após a proclamação dos resultados. “A discrepância ocorre entre quem ganha e não entre quem concorre”, resumiu.
A pesquisadora tratou, então, de investigar as causas da sobrerrepresentação dos “brancos” e da sub-representação dos “não brancos” entre os eleitos. E procurou considerar três hipóteses plausíveis. A primeira possibilidade testada foi uma eventual preferência dos eleitores por candidatos “brancos”.
“A verificação dessa hipótese é muito difícil, porque as diferenças entre candidatos ‘brancos’ e ‘não brancos’ não se resume à cor. Eles são diferentes sob vários aspectos: recursos de campanha, acesso aos diferentes partidos etc. Como separar uma coisa da outra e atribuir um comportamento do eleitor à ‘cor’ do candidato e não a outras variáveis associadas à cor?”, ponderou Bueno.
“Nossa estratégia foi fazer uma enquete domiciliar com 1.200 pessoas das cidades de Salvador e Rio de Janeiro. Preparamos vídeos com 16 atores, oito ‘brancos’ (quatro representando candidatos ricos e quatro representando candidatos pobres) e oito ‘negros’ (quatro representando candidatos ricos e quatro representando candidatos pobres). O conteúdo das falas era o mesmo, no estilo daquela utilizada durante o horário eleitoral gratuito. E a identificação de ‘riqueza’ ou ‘pobreza’ podia ser feita por meio das roupas e do tipo de discurso.
Esses vídeos foram apresentados de maneira aleatória aos 1.200 entrevistados. E lhes foram feitas várias perguntas sobre o que achavam, em escalas de um a sete, dos supostos candidatos. Até para nossa surpresa, não houve diferença significativa nas escolhas dos entrevistados com relação à ‘cor’ do candidato. E uma diferença muito pequena a favor dos ‘candidatos’ ricos.”
Mais contribuição às campanhas de brancos
Descartada, como causa principal, a eventual preferência do eleitorado por candidatos “brancos”, o estudo investigou uma segunda hipótese: se houvesse uma abertura maior do sistema eleitoral para o ingresso de candidatos, poderia ser reduzido o hiato entre eleitos “brancos” e “não brancos”?
No Brasil, municípios com até 200 mil eleitores registrados não têm segundo turno. E municípios com mais de 200 mil eleitores registrados têm. Se forem considerados os municípios logo abaixo e logo acima dessa linha de corte, qualquer diferença no comportamento do eleitorado dependerá muito mais do fato de haver ou não o segundo turno do que de qualquer outro fator. A literatura especializada mostra que, quando a eleição ocorre em dois turnos, o número de candidatos tende a ser maior no primeiro turno. A eleição em um turno só restringe as candidaturas.
“Se a desvantagem em relação aos candidatos ‘negros’ fosse simplesmente uma barreira no acesso à candidatura, os municípios com a possibilidade de dois turnos deveriam apresentar uma proporção significativamente maior de candidatos ‘não brancos’. Mas os dados levantados não confirmaram essa possibilidade”, afirmou Bueno.
A pesquisadora partiu, então, para a terceira hipótese: a de que a discrepância na proporção dos eleitos em relação aos eleitores deveria ser creditada aos recursos dos candidatos – tanto os recursos pessoais declarados quanto os recursos de campanha declarados. E verificou – “o que não foi nenhuma surpresa” – que os candidatos brancos possuíam quantidades muito maiores de dinheiro.
“Em duas eleições mencionadas (2008 e 2010), e para todos os cargos considerados, a diferença entre os bens pessoais declarados por candidatos ‘brancos’ e ‘não brancos’ foi, em média, de R$ 730 mil”, informou Bueno. “Ao mesmo tempo, verificamos que os vencedores eram, em média, R$ 740 mil mais ricos do que os perdedores – o que constitui uma evidência de que os recursos pessoais estão associados aos resultados das eleições”, prosseguiu.
A pesquisa mostrou que os candidatos “brancos” também receberam muito mais contribuições de campanha. “Em média, os candidatos ‘brancos’ eram cerca de três vezes mais ricos do que os ‘não brancos’ e receberam cerca de quatro vezes mais em doações”, escreveram Bueno e Dunning em seu artigo.
“Os dados que levantamos não me permitem afirmar isto de forma categórica, então não sabemos se os candidatos ‘negros’, dispondo de maiores recursos financeiros, teriam sua chance de serem eleitos significativamente aumentada. Os dados sugerem que sim, mas não temos como ainda saber com o tipo de pesquisa que fizemos. De modo geral, o que encontramos, e podemos dizer com segurança, é que pode haver uma desigualdade ‘racial’ na representação política mesmo na ausência de preferências fortes do eleitorado em relação a candidatos ‘brancos’, e mesmo na ausência de barreiras muito grandes à entrada de candidatos ‘negros’ nas eleições”, sintetizou Bueno.
O estudo não mostrou uma tendência de os eleitores “brancos” votarem mais em candidatos “brancos”, e os eleitores “negros” votarem mais em candidatos “negros”.
Uma outra pesquisa, conduzida por Rosario Aguilar [do Centro de Investigación y Docencia Económicas (Cide), da Cidade do México] e colaboradores e publicada na Latin American Research Review, chegou a resultado diferente em relação a este subtema. Investigando o município de São Paulo, em outro recorte temporal, mas também com metodologia experimental, Aguilar e colaboradores concluíram que, quanto maior o número de candidatos, maior a probabilidade de a “raça” virar um fator relevante para a conduta dos eleitores. Em uma eleição com poucos candidatos, preferências em relação à “raça” importariam pouco. Mas, em uma eleição com muitos candidatos, a “raça” se transformaria em uma espécie de atalho informacional para os eleitores no qual eleitores prefeririam candidatos que são do seu mesmo “grupo racial”.
“Nosso estudo chega a conclusões diferentes. O próximo passo será replicar a nossa pesquisa, com algumas modificações, para testar se o padrão que detectamos se confirma ou não. Também queremos investigar se existe algum padrão nas doações de campanha que favoreça os candidatos ‘brancos’ em detrimento dos ‘não brancos’. Estamos começando a pensar nisso de forma sistemática agora”, anunciou Bueno.
De qualquer modo, os resultados já obtidos permitem concluir que os recursos financeiros estão fortemente associados à vitória eleitoral e que os candidatos ‘brancos’ entram na disputa com muito mais recursos para concorrer.
Tal conclusão é coerente com dados da PNAD que mostraram que, a despeito de os “negros” comporem atualmente mais de 53% da população brasileira, sua participação na parcela mais rica do país é apenas pouco maior do que 17%. E cai para alguns décimos acima de 12% quando se considera o estrato superior dessa faixa de renda, correspondente às pessoas que, na época do levantamento, em 2014, tinham uma renda média de R$ 11,6 mil.
Isso significa que, mesmo se o Brasil não estivesse passando por uma grave crise política, mesmo se as instituições estivessem funcionando sem nenhuma anormalidade, ainda assim a democracia brasileira seria fortemente impactada pela herança de um passado escravista, que, transcorridos 129 anos desde a abolição, continua longe de ter sido superado.