Cientista social alemã é uma das autoras de estudo sobre questão de gênero no Brasil
(O Globo, 08/03/2017 – acesse no site de origem)
Financiador de pelo menos 25 projetos com componente de gênero em 14 estados brasileiros, o Banco Mundial elaborou um estudo recente que mostra a situação da mulher no Brasil. O trabalho “Um apanhado da questão de gênero no Brasil: instituições, consequências e um olhar mais apurado sobre as diferenças de raça e região”, em tradução livre, teve a cientista social alemã Miriam Müller, 35 anos, como uma de suas autoras. O estudo mostra que, apesar de avanços importantes em áreas como educação, saúde e violência, a mulher brasileira ainda está muito afastada do mercado de trabalho e da tomada de decisões políticas e sociais. Leia abaixo a conversa com Miriam, dada por telefone, de Washington, onde funciona a sede do banco.
O GLOBO: Quais são as conclusões do estudo?
MIRIAM: Que o panorama sobre a questão de gênero no Brasil é muito ambíguo. O país fez progressos imensos na área nos últimos anos, muitas vezes sem paralelo com outros locais do mundo. Criou políticas públicas e instituições para promover maior igualdade. É reconhecido internacionalmente por conta da Lei Maria da Penha. Quando falamos em educação da mulher, as brasileiras ficam mais tempo na escola, completam mais a educação secundária e entram mais na universidade do que os homens hoje em dia. Na saúde, o progresso foi imenso: a mortalidade materna, por exemplo, caiu muito. Mas infelizmente a coisa não acaba aí. Essa grande história de sucesso tem vários poréns, e o Brasil não pode negligenciar a questão de gênero se quiser progredir.
Em que áreas não houve progresso?
A melhor educação que elas vêm recebendo de 20, 30 anos para cá não se traduziu em progresso em termos trabalhistas. A participação feminina no mercado de trabalho aumentou míseros 1% nos últimos 10 anos; é pouquíssimo, o progresso está estagnado. Além disso, continuam ganhando muito menos do que os homens e trabalham em áreas segregadas, que não estão diretamente ligadas ao crescimento da economia. E trabalham mais: 41,5 horas por semana, contra 37,3 dos homens. Trabalham quatro vezes mais em casa, e o trabalho doméstico não é remunerado. Ou seja, a mulher tem quatro vezes menos tempo para ganhar dinheiro fora de casa. Isso é a questão financeira em si; a outra área é que elas também têm muito menos voz, muito menos participação, não têm poder de decisão.
E como essa participação poderia aumentar?
Tem a questão econômica em si, com mais inserção no mercado de trabalho, mas tem a questão política e cultural. A brasileira tem muito o que conquistar no quesito de pautar as discussões e se fazer ouvir. Menos de 10% do Congresso são formados por mulheres, número muito menor do que em muitos países da América Latina, infinitamente menor do que em países desenvolvidos. A violência contra a mulher também é preocupante (o relatório aponta obstáculos, incluindo culturais, na implementação da elogiada lei Maria da Penha). Isso tudo impede uma maior participação feminina.
Os dados mostram uma discrepância imensa da situação da mulher por raça e região também, não é?
O Brasil é imenso e tem muitas realidades, e esse é um de nossos objetivos: trabalhar para que as questões de raça e localização sejam levadas em conta na hora de se elaborar projetos. Se você é uma mulher negra e mora em certas regiões do Brasil, tem, de maneira chocante, bem menos oportunidades. Projetos não devem pensar somente na mulher como mulher, e sim na sua cor, em onde ela vive. Uma mulher negra com educação secundária no Brasil ganha em média R$ 15,6 por hora; enquanto um homem branco com o mesmo nível de educação ganha R$ 32,7 por hora. O que estamos falando é: a dimensão do problema vai além do gênero, tem a ver com raça e localização.
O relatório mostra preocupação específica com as “Nem-nems”, mulheres que não trabalham nem estudam. São mulheres em fase economicamente ativa que estão completamente fora de qualquer participação na economia e em tomada de decisões… O que leva a esse fenômeno?
Um terço das brasileiras de 18 a 35 anos não trabalha nem estuda. Nas áreas rurais, é uma em cada duas mulheres fora de qualquer instituição de ensino, de qualquer emprego. O caso é tão grave que em breve divulgaremos um estudo só sobre o tema. Num primeiro momento vimos que a questão da maternidade é realmente um impedimento para a mulher trabalhar. Mas vai além disso, porque muitas das “Nem-nems” não têm filho. Tem a ver com as oportunidades que se apresentam para as mulheres mesmo antes dos 18 anos e com percepções sobre seu papel social. Essas mulheres não têm exemplos de outras a seguir, não têm aspirações, referências, nada lhes é apresentado. Há que se atacar a raiz de por que, em muitos casos, acaba se optando por uma gravidez precoce; tem a ver com essa falta de capacidade de vislumbrar um futuro.
Como políticas públicas e multilaterais devem lidar com a questão do gênero?
Esses estudos não visam a propor projetos, mas sim a documentar as diferentes realidades brasileiras para que se escolha estados mais vulneráveis em cada área e se crie esforços por área. Um projeto de desenvolvimento da agricultura deve olhar a mulher. O acesso ao crédito não deve pensar que o principal beneficiário seja um homem branco de 35 anos. Deve se adequar financiamentos às realidades.
Falamos do lado do Estado e do organismo multilateral. E o lado da iniciativa privada? Mulheres ainda estão em posição muito inferior em cargos de chefia, por exemplo. Como a iniciativa privada pode trabalhar melhor essa questão?
Isso tem a ver com questões culturais e de gênero, que têm, na verdade, mesma raiz de tudo isso que falamos aqui. Esperamos que haja um efeito cascata. Dar mais participação às mulheres não é só importante por ser um direito, é importante porque é um fundamental para o desenvolvimento dos países. Entre 2004 e 2014, a renda das mulheres contribuiu em 15% na redução da pobreza. Conter o empoderamento e a capacidade da mulher de ganhar dinheiro significa menos progresso contra a pobreza.