Jurista que presidiu o mais importante comitê internacional de defesa dos direitos femininos fala das mais de quatro décadas de docência, pesquisa e militância
(Revista Pesquisa FAPESP, 07/2019 – acesse no site de origem)
Silvia Pimentel nasceu em Belo Horizonte (MG) e cresceu em uma casa projetada pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas (1915-1985), no bairro paulistano do Pacaembu. Filha de um casal que valorizava a educação e a cultura, aos 16 anos passou 10 meses viajando pela Europa, com os pais. “Tive duas irmãs”, conta. “Uma delas tinha uma pequena deficiência intelectual. Sabia somar, mas não multiplicar e dividir. Devido a esse fato, minha impressão é de que houve um esforço por parte dos meus pais para que eu recebesse a melhor formação possível”, conta.
Apesar da vida confortável que o pai proporcionava à família, desde menina preocupavam-lhe as mazelas sociais, especialmente as dificuldades enfrentadas pelas mulheres. Atenta ao que posteriormente se convencionou denominar de desigualdade de gênero, Pimentel descobriu o feminismo no final da década de 1970, quando já estava separada do primeiro marido, com quem viveu uma década e teve quatro filhos – que lhe deram sete netos. Atribui ao sociólogo Octavio Ianni (1926-2004) sua formação marxista – com ele leu O capital (1867). Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde construiu sua carreira acadêmica, aprendeu com o professor e ex-governador André Franco Montoro (1916-1999) a pensar “a noção do justo como fundamental ao direito” e o direito a partir de múltiplas perspectivas. “Ao final de cada capítulo de seu livro Introdução à ciência do direito, ele incluía ideias filosóficas e jurídicas bem distintas de sua linha de pensamento”, recorda. “Muitos desses fragmentos foram traduzidos por mim, do inglês, francês, italiano e espanhol.”
Há 35 anos casada com o médico Fernando Proença de Gouvêa, nesta entrevista a entusiasta da parceria militante com vários grupos de mulheres – “sempre tive uma noção muito importante do coletivo feminista” – fala de sua participação na Assembleia Nacional Constituinte, da atuação no Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da Organização das Nações Unidas (Cedaw-ONU) e de feminicídio. “O arcabouço teórico-conceitual de gênero nos mostra como a violência contra a mulher é relacional e implica relações de poder”, observa. “Só por intermédio de uma ação conjunta, nós, mulheres, vamos conseguir sair dessa situação estrutural de subalternidade.”
Você estudou em colégio de freiras e fez graduação e pós-graduação na PUC. Em que medida a religião norteou suas escolhas profissionais?
Fui aluna do Sacre Coeur de Marie e depois estudei no Des Oiseaux. A preocupação dos meus pais não era com religião. Eles buscavam a melhor escola para mim. Quando eu tinha 12 ou 13 anos, apreensiva por me ouvir dizer que não acreditava em Deus, uma das freiras me levou para conversar com a madre superiora, que quis saber a razão da minha descrença. Respondi que havia aprendido que Deus era onipotente em bondade, mas não era isso que via no mundo. Eu percebia muita tristeza e muita desigualdade. Particularmente, me impressionavam as dificuldades de mulheres como as que trabalhavam na nossa casa, que haviam deixado os filhos no Nordeste para ganhar a vida. Não entendia que sociedade injusta era essa, que quase metade dos filhos de uma mulher morre e os que sobrevivem ela precisa deixar para cuidar de outra casa, em outra cidade. A madre Maria Inez de Jesus era muito inteligente. Depois de me ouvir, disse: “Você é tão novinha, pertence a uma família católica e estuda em uma escola católica. Essa é uma questão que não será fácil para você. Você vai se opor a todo mundo, na escola e na família. O que você acha de suspender um pouco essa questão? Você guarda para você e depois retoma”. Concordei. Nesse colégio, Deus era amor. O que havia de mais bonito, em termos de religião, estava lá. Mas continuo agnóstica e não sei se meu comprometimento com a vulnerabilidade e o sofrimento humano tem a ver com essa formação.
Além do direito, você também estudou psicologia?
Meu pai queria que uma de suas três filhas estudasse direito. Na cabeça dele, direito era uma profissão masculina, era “uma profissão de verdade”. Fiz a graduação em duas etapas. Cursei os três primeiros anos, casei, fiquei seis anos com a faculdade trancada, tive quatro filhos e, imediatamente depois do nascimento do caçula, voltei para concluir a graduação. Fiz pós-graduação em psicologia antes de cursar as disciplinas do mestrado em direito. Foram três anos de estudos. Roberto Aguiar, que era assistente do professor Montoro na Faculdade de Direito da PUC, me dizia: “Não é possível você praticamente rasgar seu diploma de direito. Por que não faz então psicologia da educação e fica aqui conosco, como auxiliar de ensino?”. Foi ele que me convenceu a não dispensar os cinco anos de formação em direito. E foi assim que trabalhei com ambos na PUC.
Como foi conciliar maternidade e formação acadêmica?
Depois que casei, passei a viver em uma casa muito distante do centro da cidade, sem telefone e sem carro. A cada 16 meses tive um filho. Para não interromper minha formação intelectual, estabeleci que teria um tempo exclusivamente para mim, todos os dias. Nesse período, dedicava uma hora para música erudita e uma hora para leitura dos clássicos. Li todo Tolstói [1828-1910], Shakespeare [1564-1616], Dostoiévski [1821-1881].
Em 1977, ao término de seu doutorado direto em direito, você defendeu tese intitulada “Evolução dos direitos da mulher – norma – fato – valor”. Por que escolheu esse tema?
Minha orientadora, Haydée Maria Roveratti, era socióloga do direito. Eu não sabia exatamente com que tema gostaria de trabalhar e recebi dela o seguinte conselho: escolha um tema que diga muito ao seu coração e ao seu intelecto. Optei por estudar a evolução dos direitos da mulher.
A escolha acabou definindo sua trajetória profissional.
Foi uma resposta do que meu coração e intelecto desejavam. Inclusive porque eu tinha uma carga pessoal de violência psicológica muito forte, que me convenceu ainda mais da importância de se compreender a situação da mulher. Naquele momento, ninguém se importava com os direitos da mulher. Como sujeito de direito, a mulher era invisível. Só não havia invisibilidade em relação à “punição” em crimes como o de adultério, por exemplo, até 2005, quando foi retirado do Código Penal.
A mulher era invisível quanto aos direitos, mas seus supostos deveres eram sempre lembrados?
Exatamente. Para apreender essa realidade, parti da teoria tridimensional do direito, desenvolvida por Miguel Reale [1910-2006], que é crítica ao positivismo jurídico e diz que o direito não é apenas a norma positiva, mas a integração dialética de fato, valor e norma. De acordo com essa teoria, a norma jurídica é o resultado da tensão que existe entre fato e valor. Muitas vezes, dessa tensão origina-se uma nova norma, ou uma norma que vem revogar outra, que perdeu sua razão de ser em relação a valores que vão surgindo e a partir de novas relações fáticas. Essa teoria me permitiu identificar que a definição da condição da mulher, como hierarquicamente inferior, resulta de um conjunto de circunstâncias histórico-econômico-sociais.
Você parece muito confortável em se declarar feminista. É isso mesmo?
Iniciei meu ativismo logo depois da defesa da tese. Sou uma das fundadoras da Frente de Mulheres Feministas, cuja grande liderança foi Ruth Escobar [1935-2017]. Nunca, em momento algum, deixei de me apresentar como feminista. Inclusive acadêmica feminista. Alda Facio, jurista costa-riquenha, elabora isso muito bem. Nenhuma de nós, que somos acadêmicas feministas, somos puramente teóricas. Ao estudar uma lei ou uma norma, desse ou daquele país, temos um olhar comprometido com a igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Além de filosofia do direito, você também leciona uma disciplina optativa, interdisciplinar, aberta a alunos de todos os cursos, denominada direito, gênero e igualdade. É importante ensinar gênero na universidade?
Mais do que nunca. Há algum tempo já está claro que o conceito de gênero constitui importante instrumental analítico para melhor compreender a situação de inferioridade da mulher. O curso utiliza a mesma estrutura do verbete sobre direito e gênero que escrevi para a Enciclopédia jurídica da PUC, digital. Tratamos da origem do conceito de gênero, das três ondas do feminismo, da interseção de gênero com outros marcadores sociais da diferença e da desigualdade como classe, raça e etnia, por exemplo, e da práxis contemporânea. Porque o conceito de gênero é dinâmico e está em constante reconstrução. No curso também trabalhamos a relação entre gênero e direito, no âmbito nacional e internacional. Nesse sentido, minha passagem pela ONU foi muito estratégica. Aliás, a ideia da disciplina surgiu porque estive 12 anos no Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, o Cedaw.
Foram três mandatos de quatro anos no Comitê Cedaw. Como foi a sua eleição?
Em 2005, o meu nome foi levado pelo movimento de mulheres ao Ministério das Relações Exteriores. O governo brasileiro se comprometeu e me indicou como candidata. Fui três vezes a Nova York para conversar com os representantes dos estados-parte da Convenção Cedaw. Tenho muita facilidade em línguas, mas o que encantou meus interlocutores, soube depois, foi minha militância em prol dos direitos da mulher no Brasil.
Sua participação na Assembleia Constituinte, por exemplo?
Os grandes marcos da minha trajetória, que contaram para que fosse eleita, foram a participação na modificação do Código Civil e na Constituinte. Desde 1980 eu trabalhava, com minha amiga jurista feminista Florisa Verucci [1934-2000], na elaboração de uma proposta de alteração do código de 1916. Nosso Código Civil era quase uma estampa do Código Civil francês, napoleônico, de 1805. Dois artigos eram particularmente problemáticos. O 233, que tratava dos direitos e deveres do marido, da chefia da sociedade conjugal, o que incluía o direito de autorizar a profissão da mulher, e o artigo 380, que estabelecia que durante o casamento o marido, como chefe da família, exercia o pátrio poder. Ou seja, em qualquer situação na vida dos filhos, a última palavra era do pai. Nossa proposta, de um novo Estatuto Civil da Mulher, foi entregue no Congresso Nacional em 1981.
Nunca, em momento algum, deixei de me apresentar como feminista. Inclusive acadêmica feminista
Vocês estavam otimistas em relação à apreciação da proposta?
A proposta não foi votada imediatamente, mas acabou se transformando em pelo menos 10 projetos de lei, apensados ao projeto do novo Código Civil, que tramitava desde 1975 e foi aprovado em 2002. No código atualmente vigente há formulações nossas, literais.
E na Constituinte, como foi sua atuação?
A partir de 1986, muitas mulheres se reuniram sob a coordenação da socióloga Jacqueline Pitanguy, então presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Éramos pouquíssimas advogadas. Viajamos por todo o país, buscando ouvir mulheres de todas as regiões. Muitas diziam: “Vocês são advogadas, vocês é que sabem como fazer”. Replicávamos: “Vamos dar a forma, quem vai dar o conteúdo são vocês”. As mulheres falavam muito de educação, saúde, das dificuldades envolvendo a titularidade das próprias terras. Para dar forma a isso, solicitei a outra amiga, Sylma Correa, que pesquisasse constituições de outros países, em busca de artigos que indicassem avanços para as mulheres.
Você estava em busca de inspiração?
Sim, queria exemplos para basear nossa discussão. Ela conseguiu, em vários consulados, quase duas dezenas de constituições. Eram da Alemanha, Angola, Argentina, Bulgária, Canadá, China, Cuba. Fiz uma espécie de estudo comparado com um recorte peculiar, que acabou se transformando no livrinho A mulher e a Constituinte: Uma contribuição ao debate, simplesmente porque foram os textos que rapidamente pudemos ter acesso. Na Constituinte insistimos na igualdade entre homem e mulher. Meus colegas da PUC, que estavam acompanhando o processo constituinte, me criticavam por querer repetir, no artigo 226, que trata da família, noção já explicitada no artigo 5. Diziam que eu não parecia uma jurista. Ora, a Constituição não é um documento apenas jurídico. É um documento político e jurídico. E meus estudos já mostravam a grande discriminação em relação à mulher, no núcleo familiar. Foi assim que incluímos o parágrafo 5º, estabelecendo que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente entre o homem e a mulher”. E incluímos também o parágrafo 8º, indicando que cabe ao Estado coibir a violência doméstica e familiar.
Você também participou da elaboração da Lei Maria da Penha. Como foi esse processo?
É importante traduzir o quanto esses avanços na legislação do nosso país advêm do movimento de mulheres. Durante meus 12 anos na ONU tive a oportunidade de conhecer distintos movimentos de mulheres. O movimento da América Latina e o brasileiro, em particular, são exemplares. Souberam aliar a necessidade de modificar as leis, mas também as mentalidades, por meio de grupos de atendimento e de formadoras de opinião. A Lei Maria da Penha surgiu a partir da liderança da Leila Linhares Barsted, que durante mais de um ano reuniu sete organizações não governamentais [ONGs], no Rio. Era um consórcio de ONGs e eu representava o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, o Cladem. Trabalhamos inspiradas na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994, e na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Esta convenção é de 1979, mas no momento de sua aprovação não havia condições para que os avanços propostos fossem inseridos na legislação. A esse respeito, aliás, a normativa internacional não deixa dúvidas: a superação da violência só vai se dar quando lidarmos com a violência na perspectiva de gênero, como violência que é estrutural e estruturante, em sociedades desiguais e patriarcais. Combater a violência contra a mulher é lutar pela sua inserção em uma sociedade democrática. É empoderar a mulher.
Nesse sentido, como pensar o feminicídio?
A partir das relações afetivas, por exemplo. Todos nós sabemos como pode ser duro um rompimento afetivo. Será que nós, mulheres, não experimentamos sofrimento muito forte nessas ocasiões? Claro que sim. O sofrimento é inerente ao ser humano. Por outro lado, em termos morais, os homens não são piores do que as mulheres. Mas estão inseridos na sociedade que os educou e muitos se dão ao direito de espancar e matar mulheres. Por quê? Só encontramos uma razão: eles estão imbuídos do que lhes é permitido. No direito romano o poder do pater familias [pai de família] é vitae necisque potestas, ou seja, poder de vida e de morte. Naturalmente não foi o direito romano que inventou a violência contra a mulher. A humanidade foi construindo historicamente essa violência.
Em um país tão desigual quanto o Brasil, não é preciso ir à ONU para constatar a diversidade e as dificuldades das mulheres
Como o conhecimento científico pode ajudar a romper ciclos de violência, como a doméstica?
A empreitada é multidisciplinar e vai além da criminologia. Demanda esforços de distintas áreas. A lei pode colaborar, mas para garantir os direitos das mulheres são necessárias, mais do que tudo, políticas públicas embasadas em um conjunto normativo preventivo, protetivo, punitivo e reparativo, como a Lei Maria Penha. É muito importante termos políticos com formação suficiente para entender que a mulher não é diferente do homem só porque biologicamente nasce com características diferenciadas, mas porque vivemos em uma sociedade em que há papéis tradicionalmente designados à mulher e papéis tradicionalmente designados aos homens. É aí que entra a noção de gênero e todo o conhecimento acumulado sobre o tema, com as contribuições de Simone de Beauvoir [1908-1986], Kate Millett [1934-2017], Gayle Rubin, Joan Scott, Judith Butler, Heleieth Saffioti [1934-2010], Lourdes Bandeira, Lia Zanotta Machado, dentre outras. E é esse instrumental teórico que nos permite tirar o tema da violência contra a mulher da esfera individual, para realmente entender o lugar que a mulher ocupa na sociedade, que é estruturada por classe, raça, gênero. Sem considerar isso, é impossível um tratamento efetivo em termos de políticas públicas.
O sistema ONU tem desempenhado papel relevante nessa construção. Em 2015, durante sua gestão no Cedaw, outro passo importante foi dado com a aprovação da Recomendação Geral 33. Como isso foi possível?
Só me candidatei ao terceiro mandato no Comitê Cedaw porque estava comprometida com a ideia de que era importante realizar uma recomendação geral, portanto a todos os estados-membros do sistema, sobre o acesso da mulher à Justiça. Sigo convencida de que não bastam direitos substantivos, nas constituições e na legislação infraconstitucional. É inegável que, mundo afora, houve realmente um avanço formal muito grande. Mas isso não é suficiente. Mesmo que se tenha uma legislação constitucional e infraconstitucional garantidoras e reforçadoras da igualdade de gênero, não temos sistemas de Justiça acessíveis à população. E esse é um dos grandes problemas do direito, para quem não vê o direito apenas como um conjunto formal de leis, mas como um sistema vivo, servindo efetivamente à própria sociedade. A Recomendação Geral 33, que conseguimos aprovar, trata da importância das autoridades e dos sistemas de Justiça levarem em consideração quão diferente é a inserção da mulher na sociedade, se comparada à do homem. Ao chamar a atenção para o cumprimento da normativa sobre o tema, a recomendação aborda os componentes essenciais ao acesso à Justiça, além de destacar a necessidade de informar a população sobre os direitos das mulheres e a urgência em promover a perspectiva de gênero entre os operadores do direito.
Sua trajetória profissional evidencia grande capacidade de dialogar com outras áreas do conhecimento.
Não dá para trabalhar o direito da mulher apenas juridicamente. Os estudos de gênero trabalham o pensamento de Claude Lévis-Strauss [1908-2009] e passam muito por Michel Foucault [1926-1984]. Porque é preciso efetivamente entender quem é o sujeito mulher e como se insere na sociedade. Os estudos interdisciplinares serviram para ampliar, no movimento feminista, a noção de que não se trata de um conceito universal e abstrato de mulher, e sim de mulheres em sua concretude e diversidade.
São as mulheres.
Sim, no plural. Isso é uma construção do próprio movimento. Em um país tão desigual quanto o Brasil, não é preciso ir à ONU para constatar a diversidade e as dificuldades das mulheres. Na reflexão acadêmica, hoje incluímos mulheres que não nasceram biologicamente mulheres e todas aquelas que não vivem o que chamamos de heterossexualidade imposta. Nos nossos cursos, trabalhamos a questão LGBTI, usamos a teoria queer, que trata da construção e da fluidez de papéis e comportamentos. Ao trabalhar com esse instrumental, colaboro também com um princípio maior, que me é muito caro, que é o da inclusão social. Grande parte das mulheres brasileiras é negra e advém de camadas desfavorecidas economicamente. Impossível ignorar esses dois grandes vetores sociais, que chamamos de marcadores sociais. Não dá para estudar a temática feminina sem necessariamente buscar essa perspectiva interdisciplinar e interseccional.
Na década de 1990, você desenvolveu pesquisa intitulada “A figura/personagem mulher em processos de família”. Qual foi o principal achado?
Junto com Beatriz Di Giorgi e Flávia Piovesan, constatamos a presença muito forte dos estereótipos e preconceitos em relação a nós, mulheres, pelos operadores do direito. Os estereótipos e preconceitos de gênero existem universalmente, estão presentes em todas as culturas, profundamente inculcados. São, portanto, absorvidos pelos operadores e refletidos em sua prática jurídica. Alguns anos depois desenvolvi, com Ana Lúcia Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian, reflexão mais alentada, no livro Estupro: Crime ou “cortesia”? Abordagem sociojurídica de gênero.
A ambiguidade sugerida no título desse livro é muito forte.
O título foi extraído dos autos de um processo de violência sexual. Um estudante de direito me trouxe um recorte de jornal com a manifestação de um procurador do Ministério Público do Rio de Janeiro. Ele sustentava que o réu não deveria ser considerado culpado porque a vítima, uma menina de 13 anos, o assediou até o fim. Dizia textualmente: “Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar (fls.) e o que, em retribuição lhe fez Cortez, uma cortesia…” Nos casos de violência sexual ainda hoje prevalece a máxima in dubio pro stereotypo.
Você conseguiu algo que muitos pesquisadores apenas almejam: utilizar o conhecimento científico para transformar a realidade. Como se sente?
A meses de completar 80 anos, a idade grande me permite, felizmente, sentir alegria por ter feito algo em termos de justiça. Sinto-me privilegiada. Ao mesmo tempo tenho clareza de que não foi tanto. Porque muito mais é preciso ainda ser feito, para que as mulheres conquistem efetivamente uma situação de igualdade. Tenho ouvido jovens da área do direito dizer que se consideram juristas feministas inspiradas no meu trabalho. Interessante como minha produção não reverberou tanto nos anos 1970 e 1980, mas hoje parece estimular a nova geração. Sigo encantada pelo meu tema.
Silvia Pimentel
Idade 79 anos
Especialidade
Teoria e filosofia do direito e direitos das mulheres
Instituição
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Formação
Graduação (1970)e doutorado (1977) em direito, pela PUC-SP
Produção
13 livros escritos ou organizados, 31 capítulos de livros
Por Glenda Mezarobba