Denúncias feitas ao serviço Ligue 180 cresceram 30% em 2024. Alemanha é o país com mais casos reportados às autoridades brasileiras, seguido de Estados Unidos e Itália
A brasileira Anna Gleicy Brito, de 29 anos, mudou-se para o Reino Unido há cerca de dois anos e meio, em busca de oportunidades profissionais. Ao chegar, começou a trabalhar como entregadora de delivery e ficou muito amiga de outro brasileiro. No último dia 31 de agosto, enquanto esperava uma entrega numa rede de fast-food em Kent, a 25 quilômetros de Londres, ela foi esfaqueada pelo amigo. O suspeito tentava forçar um relacionamento afetivo com a vítima, que já havia dito não, e foi detido dias depois na Escócia.
O caso de Anna não é único. No primeiro semestre deste ano, a Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 recebeu 640 denúncias de violência doméstica e de gênero sofridas por brasileiras no exterior, um aumento de 30% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram registradas 487 denúncias. Os números são puxados pela Alemanha, com 132 casos já reportados neste ano, seguida por Estados Unidos, Itália, Portugal e Ucrânia.
A situação preocupa, sobretudo porque a comunidade brasileira no exterior cresce ano a ano desde 2016.
Atualmente, cerca de 4,9 milhões de brasileiros e brasileiras residem fora do país, um aumento de 400 mil pessoas em um ano. Desses, cerca de 1,6 milhão vivem na Europa, a maioria em Portugal, Reino Unido e Alemanha. No Reino Unido, onde vive Anna, são cerca de 230 mil pessoas, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores – um aumento de 10 mil pessoas entre 2022 e 2023. A pasta não disponibiliza dados discriminados por gênero.
“Perfil da vítima é de mulheres jovens”
Entre novembro de 2019 e dezembro de 2023, a Rede de Apoio às Brasileiras Vítimas de Violência Doméstica na Europa (Revibra) atendeu cerca de 1200 casos, sendo mais de 90% referentes a violência doméstica ou de gênero. Neste ano, já foram 400 casos denunciados à organização.
“A gente recebe muito esse perfil – não só para o Reino Unido, na Alemanha é até maior –, de mulheres jovens, acima de 20 anos, que vêm para a Europa procurar trabalho, se estabelecem na comunidade brasileira e sofrem violência de um parceiro, namorado, chefe ou até desconhecido”, afirma Marcia Baratto, coordenadora-geral e chefe do departamento de pesquisa da Revibra.
De acordo com a entidade, essas mulheres estão multiplamente vulnerabilizadas, pelas próprias características do processo de imigração, que muitas vezes as deixa sem rede de apoio, mas também porque estão submetidas, muitas delas, ao trabalho por plataformas, que não dá garantias trabalhistas, e a serviços de apoio oficiais pouco sensibilizados e treinados para lidar com mulheres imigrantes.
Denúncias de violência de gênero e doméstica contra brasileiras no exterior – Os cinco países com mais casos
- Alemanha – 132
- Estados Unidos – 57
- Itália – 55
- Portugal – 53
- Ucrânia – 48
Instituições oficiais não estão preparadas para lidar com imigrantes
A história da brasileira L., de 33 anos, é reflexo dessas vulnerabilidades. Ela nunca sonhou em viver no exterior, mas foi para a Inglaterra motivada por uma decisão do ex-marido, há cerca de dois anos e meio. Os dois se mudaram com o filho, na época com dois anos. Na primeira semana morando em Londres, o homem iniciou as agressões físicas contra L.
Tudo era motivo para acentuar as atitudes agressivas do companheiro: descobrir que iriam precisar dividir uma casa com outras pessoas, não encontrar uma babá a preço acessível para cuidar da criança, ficar sem dinheiro por ter comprado uma moto para começar a trabalhar como entregador de aplicativo. L. tentou se separar duas vezes, depois que o ex-companheiro jogou um copo de cerveja e bateu nela com o capacete da moto.
Sem residência legal, era ameaçada de ser denunciada pelo ex-marido ao órgão de imigração britânico, o Home Office. O homem chegou a jogar no lixo todos os documentos que ela havia trazido do Brasil e a esconder o passaporte dela. A situação só foi interrompida quando ele empurrou L. de uma escada de 18 degraus, o que a fez denunciá-lo para a polícia.
Nesse momento, entretanto, ela começou a se deparar com todas as fragilidades do sistema de suporte a uma imigrante vítima de violência de gênero.
Esse sistema varia de país para país, mas no geral, de acordo com Marcia Baratto, ainda “está nos anos 1900” quando o assunto é garantia dos direitos das mulheres. “O sistema inglês tem sete protocolos específicos para violência de gênero e doméstica. Na parte institucional, você olha de fora e diz que não tem problema, que tudo funciona”, afirma.
De acordo com Juliana Santos Wahlgren, diretora jurídica da Revibra Europa, o problema está na aplicação das leis e protocolos, pois o tratamento dado às vítimas e agressores depende da condição legal de residência, da nacionalidade, entre outros fatores que distinguem os imigrantes e locais. Outro problema é encontrar um tradutor disponível para acompanhar e mediar as denúncias e atendimentos.
O tratamento depende ainda do contexto nacional. De acordo com a Revibra, uma das grandes dificuldades na Europa é fazer a violência psicológica ou verbal ser reconhecida como violência de gênero.
Entre os casos que chegaram à Revibra, 97% tinham outro tipo de agressão que antecedeu a violência física. “Um dos motivos da tentativa de homicídio é porque a polícia não levou a sério as outras etapas. A invisibilidade institucional e essa revitimização pelas instituições facilitam ou reforçam o comportamento do agressor”, acrescenta Wahlgren.