Os dados sobre violência contra a mulher não param de impressionar: de 2017 para 2018, aumentaram tanto os casos de feminicídio quanto os de violência doméstica, aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A cada dois minutos uma mulher sofre violência em casa.
(Universa, 03/10/2019 – acesse no site de origem)
Esse tipo de levantamento costuma levar em conta a raça e a escolaridade das vítimas, mas deixa de lado um aspecto importante da equação: a relação entre violência doméstica e a religião dessas mulheres.
Um dos poucos trabalhos sobre o tema foi desenvolvido pela teóloga Valéria Cristina Vilhena e publicado no livro “A igreja sem voz – análise de gênero da violência doméstica entre as mulheres evangélicas”, de 2016. O estudo, feito na Casa Sofia, espaço de acolhida na cidade de São Paulo, mostra que 40% das mulheres vítimas de agressões físicas ou verbais dentro de casa se declaram evangélicas. No Brasil, os evangélicos correspondem a cerca de 30% da população.
A fim de lidar com essa realidade, 20 mulheres, entre pastoras e líderes evangélicas de diferentes congregações, no Espírito Santo, criaram um grupo de trabalho para debater o assunto nas instituições religiosas. O projeto foi abraçado pela vice-governadora do estado, Jaqueline Moraes.
“O propósito é conscientizar todos os envolvidos nesse tipo de situação: a vítima, o agressor e os filhos. É preciso discutir isso no âmbito religioso porque muitas vezes esses temas são tabus, e a negação de qualquer assunto impossibilita o tratamento.”
Perdoar ou denunciar?
Vergonha, medo de expor o agressor ou dificuldade em se sustentar financeiramente são alguns dos motivos que levam mulheres a não relatar violências que sofrem dentro dos lares. Na igreja, diz Andreia, soma-se a esses fatores a ideologia cristã do perdão. “É como se denunciar fosse algo desnecessário já que o perdão aconteceu. Como Cristo nos perdoa de todos os pecados, nós também temos que perdoar. Mas não é assim. Nós acreditamos no perdão, mas isso não significa que não existam consequências para os atos. Tem que agir. Há oração, mas também há ação. Confunde-se muito a questão humana com a espiritual.”
É aí que o programa entra: para levar informação, por meio de conversas, palestras, sensibilização, vídeos e relatos das vítimas —canal poderoso de comunicação na igreja. Para isso, o grupo de trabalho auxiliará pastores e líderes locais a trabalhar o assunto. Ou seja, é um projeto conjunto, para que cada igreja se torne protagonista de mudança desse cenário na comunidade onde atua.
“O papel da igreja, assim como o de qualquer grupo social, é o de proteger a vítima, de trazer a consequência para o abusador, de educar os homens”, diz Andreia. “Talvez a igreja não tenha estrutura para acolher a vítima, mas precisa saber para quem ligar ou para onde levar essa mulher que está passando por algo difícil.”
O projeto-piloto será posto em prática entre outubro e novembro. A partir daí, as líderes farão os ajustes necessários para, em seguida, abrir a iniciativa para todas as igrejas interessadas em recebê-las.
Pastores mandam orar para que a situação melhore
Jaqueline Moraes, vice-governadora do Espírito Santo e evangélica há 30 anos, encampou a iniciativa das líderes religiosas.
“Quando o projeto chegou até mim, me espantei com o fato de 40% de vítimas serem evangélicas. Ao procurar, descobri que não há um levantamento do tipo no Espírito Santo”, diz a vice-governadora. “A violência dentro do ambiente evangélico começa sutil, no psicológico, que é difícil identificar. Ao conversar com o grupo, percebemos que alguns pastores mandam orar para que a situação melhore e não orientam a denunciar. E o ciclo da violência tem que ser quebrado no início para não chegar às vias finais.”
Como evangélica, a vice-governadora diz que a Bíblia é toda baseada em amor e qualquer texto que fale da entrega de um casal é baseado em respeito, embora exista quem interprete errado. “Não vamos mexer em nenhum preceito bíblico, vamos trabalhar a comunicação não violenta e conversar para quebrar os conceitos machistas reproduzidos por homens e mulheres”, diz Jaqueline.
“Em uma conversa com homens, perguntei: ‘Quem ajuda em casa?’ Todos levantaram as mãos felizes. Rebati: ‘Mas como vocês ajudam se fazem parte do lar? É obrigação de vocês também’. A igreja tem um papel fundamental nisso porque é uma célula da sociedade. Tem que trabalhar contra a desumanização e para a quebra de paradigmas.”
Por Lucas Vasconcellos