Em uma semana, primeira Delegacia da Mulher 24 horas registra três flagrantes

29 de agosto, 2016

Segundo a delegada titular da DDM, a maioria dos casos vem da periferia

(Brasil de Fato, 29/08/2016 – acesse no site de origem)

Nesta segunda-feira (29), a Central de Flagrante 24 horas da 1ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), localizada no centro de São Paulo (SP), completou sete dias de funcionamento 24 horas. Neste período, registrou pelo menos três flagrantes de violência doméstica no período da madrugada.

A primeira DDM, criada em 1985, é a única do Estado de São Paulo que está funcionando durante todo o dia e aos finais de semana. O horário de atendimento das oito demais delegacias da capital, das 16 da região metropolitana e das 107 do interior continua sendo das 9h às 18h.

Segundo Giovanna Valenti Clemente, delegada titular da 1ª DDM, o mérito da criação deste serviço é todo do movimento feminista. “Fizeram tanta manifestação que, por pressão, acabaram instalando. E é importante, porque muitas agressões ocorrem a noite”, opina.

A instituição do serviço coincidiu com o mês do aniversário de dez anos da Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006.

Balanço

Somente na primeira noite de atendimento 24 horas, foram registrados dois boletins de ocorrência.

O primeiro caso, registrado por volta das 20h do dia 22, foi um estupro de vulnerável, em que a vítima, uma menina, foi abusada pelo próprio pai.

“O que mais me surpreendeu foi o número de casos de estupro de crianças. É enorme. Chega bastante aqui. Pedofilia tem muito, por pai, padrasto, irmão, primo”, conta a delegada.

A delegacia em si é cheia de crianças que são vítimas ou que vão acompanhar as mães nas denúncias. Durante o período em que a reportagem esteve no local, pelo menos quatro menores de idade esperavam pelo atendimento.

Cuidado

Embora o serviço 24 horas da Delegacia da Mulher seja considerado extremamente necessário por garantir, em tempo integral, um tratamento mais seguro e cuidadoso para as vítimas, são muitas as denúncias de maus tratos durante o próprio atendimento das vítimas nas delegacias.

Segundo Giovanna, apesar de haver uma preferência por funcionárias mulheres, não há nenhum tipo de treinamento oferecido pelo Estado para os funcionários da DDM, e a maioria das pessoas “acaba sendo lapidada pelos funcionários com mais experiência”.

Por ironia, após a entrevista, um dos meninos presentes na DDM, de 14 anos, era questionado junto à sua mãe pela chefe dos investigadores sobre o fato de estar trabalhando em vez de frequentar a escola.

Em tom de voz elevado e portas abertas, a investigadora perguntava se o menino “queria ser vagabundo como o pai”, explicando que ele deveria estar na escola, e que a Fundação Casa era um lugar de meninos sem família, filhos de “vagabundos e putas”.

A investigadora ainda chegou a afirmar que é a favor da pena de morte, e que isso solucionaria parte dos problemas do Brasil.

Confira a entrevista com a delegada Giovanna Valenti Clemente na íntegra:

Brasil de Fato – Como foi o processo de criação da DDM 24 horas e qual a sua importância?

Giovanna Valenti Clemente – Na verdade, o mérito da criação da delegacia 24 horas é todo das mulheres. Eu acho que não iriam instalar se o pessoal não fizesse uma pressão, sabe? E é importante porque muitas agressões ocorrem a noite.

Se a mulher chama a Polícia Militar (PM) e vem para a delegacia, você já faz um flagrante. Se ela vem no outro dia, não faz. É lógico que faz um Boletim de Ocorrência (B.O), instaura um inquérito, mas aquele momento do flagrante passou. Eu acho que isso acaba intimidando os homens.

No flagrante, o vizinho ou ela própria chama. A PM vai até a casa dela e, se o homem não fugir, você consegue fazer o flagrante. Se o cara foge, você só faz a ocorrência.

Por que você acha que a delegacia 24 horas não teria sido estabelecida sem o movimento feminista?

Devido à falta de funcionários, as delegacias estão trabalhando no limite. Todos os funcionários estão no limite. E a nossa atribuição é concorrente, não é exclusiva. Se a mulher for em delegacias distritais, ela também pode denunciar, por isso não tinha delegacia 24 horas.

Não sou da época, mas ninguém deixava de registrar. Acontece que a mulher não se sente segura de ir para a delegacia da área. Se a agressão é muita e ela se sente muito ameaçada, aí sim, ela vai. Caso contrário, ela prefere vir em uma Delegacia da Mulher (DDM) durante o dia.

O que elas não sabem é que tem nove DDMs na cidade, cada seccional tem uma. Tem a central [aqui], a leste, a oeste, etc. Às vezes, o pessoal tem o conhecimento só dessa, porque ela acaba sendo mais divulgada.

Por que as mulheres se sentem mais seguras aqui?

Primeiro, porque o pessoal só está acostumado a atender esse tipo de ocorrência. Então, fica mais tranquilo, acho que elas se sentem mais confiantes em contar o que acontece.

Em uma delegacia normal, às vezes ela é atendida por um delegado homem. O pessoal está acostumado a atender roubo, furto ou crimes contra o patrimônio. Na hora que vai atender uma vítima de uma violência doméstica, o pessoal atende, mas não tem a riqueza de detalhes e atenção que a vítima espera no momento. Porque todas precisam de um acompanhamento psicológico, que não existe.

Tem o Centro de Referência da Mulher, para onde a gente encaminha, mas elas são muito resistentes, então entra em um círculo vicioso. Aqui, temos preferência por funcionárias mulheres, porque temos mais sensibilidade. Eu trabalho como homens e eu sinto isso… Para eles, algumas denúncias são bobeira.

Em uma semana de delegacia da mulher 24 horas, já deu para perceber um padrão nos dados de denúncias feitas à noite e na madrugada?

A gente ainda não tem os dados, mas dá para falar tranquilamente que as denúncias aumentaram, principalmente o número de flagrantes, o que a gente já esperava.

Foram três ou quatro flagrantes de noite, que não teriam acontecido se não estivesse funcionando 24 horas. Todos foram de violência física. Um deles, inclusive, foi a mãe que apanhou do filho, usuário de entorpecente. Queria dinheiro e empurrou a mãe. Normalmente é assim: os homens têm 30 ou 40 anos, e as mulheres têm 70, 80. Aí, o irmão dele, que estava chegando em casa, chamou a PM.

Violência sexual é mais difícil de fazer flagrante. Pode acontecer, mas a vítima tem que ser rápida. Semana passada, aconteceu um flagrante de violência sexual, o cara era pintor e esclareceram oito ou nove vítimas de estupro dele, porque a última vítima foi direto para a DDM, depois do estupro. O cara ainda estava por lá, em um prédio abandonado.

Você percebe que as mulheres conhecem o serviço da DDM, ou acabam aqui por acaso?

Elas conhecem. Até porque nunca é a primeira vez. É difícil pegar uma ocorrência que tenha vindo pela primeira vez. Geralmente, elas já fizeram um B.O de ameaça, algum registro, já se informaram. Não é algo novo na vida delas. Para os homens é uma surpresa, mas eles tem sempre aquele discursinho pronto de briga de marido e mulher. Não adianta. É uma ocorrência que é diferente de patrimônio, aquilo tem continuidade por muito tempo.

A defesa deles é sempre que eles tentaram segurar e acabaram machucando, ou que ela bateu também. Não foge disso. No primeiro momento elas vêm por raiva. Tem umas que pedem abrigo, geralmente quando estão com filhos, mas é difícil de acontecer também.

O que mais te surpreendeu desde que começou a trabalhar na DDM?

O que mais me surpreendeu, porque eu nunca havia trabalhado em uma Delegacia da Mulher, foi o número de caso de estupro de vulnerável, de crianças. É enorme. Desde três ou quatro anos, até dez, onze anos.

Às vezes, as crianças vem com a mãe também. É uma delegacia que o pessoal traz muito os filhos. Mas pedofilia tem muito, e por pai, padrasto, irmão e primo.

Já peguei dois ou três casos de irmãos, meninos de 16 anos, que tentam abusar de meninas de 11. Vão para a cama delas a noite e falam ‘ó, a mamãe deixou’. Os pais ficam desesperados, porque os dois são filhos. É muito triste pegar casos de meninos em formação fazendo isso, é muito estranho.

Teve uma que chegou com onze anos. A mãe dela casou de novo, e o cara começou a abusar dela quando ela tinha seis anos, uma vez por semana. Ele levava a menina para o quarto deles, deixava a outra filha assistindo televisão. Aí, tem que ir perguntando. Se ela sangrava, porque será que a mãe não via o sangue?

Quando a menina chegou aqui já fazia um mês que ela tinha contado para a mãe. Normalmente, as mães ficam paralisadas. Acho que falta o chão para elas. Aí, a menina surtou na sala de aula, contou para a professora no meio de todas as crianças.

Em caso de estupro, a menina ou a mulher está machucada ou grávida. O que mais pega é o laudo psicológico, porque você encaminha essa criança para a avaliação psicológica.

São comuns as denúncias de maus tratos das mulheres que denunciam pela própria delegacia. Há algum tipo de treinamento para os funcionários?

Não, o Estado não oferece. As pessoas vêm por seleção e algumas se oferecem. Nesse caso, você vê se ela tem o perfil, porque tem gente que não tem paciência.

Aí, nós vamos lapidando. A pessoa acaba sendo lapidada pelos mais velhos, que têm mais experiência. Não tem nenhum curso direcionado, até seria necessário.

Qual o perfil dos estupradores das mulheres? São homens próximos ou mais desconhecidos?

Geralmente são desconhecidos. Tem um caso ou outro de mulher estuprada por conhecidos, pelo marido. Mas, geralmente, os casos de denúncias de conhecidos são de ameaças de morte e violência física. É muito baixo o número de mulheres estupradas por homens próximos que denunciam.

Vão ser criadas mais delegacias 24 horas?

Eu ouvi que sim, que as outras que já existem vão virar 24 horas. Mas não sei, porque tem que ter uma autorização, funcionários…

Qual o perfil das mulheres que denunciam?

A grande maioria é classe média-baixa, mas também tem classe média, um pessoal com situação financeira boa.

Na semana passada, teve o caso de um menino que o pai dele colocava vale-sorvete no ânus dele. Uma situação financeira boa, moraram nos Estados Unidos, vieram para cá, moram em um bairro ‘bacana’. Mas a maioria vem da periferia.

Quando os homens são chamados para depor, demonstram agressividade aqui na delegacia?

Ninguém vem aqui agressivo, eles vêm parecendo cachorrinhos. Você olha e pensa: não, esse cara não fez isso. Mesma coisa com os estupradores. Quem vê cara não sabe o que eles fazem. Tem que ouvir as vítimas. Mas, normalmente, eles querem provar que não são agressivos.

Trabalhar na DDM é mais desgastante do que trabalhar em delegacias normais?

É mais triste. Quando você pega casos de estupro e pedofilia, principalmente. Com mulheres adultas já é difícil, com crianças então. Eu fiz um caso que eu voltava para casa todos os dias focada em pegar o cara, sem conseguir dormir. Não fiz outra coisa até pegar o cara.

Porque daí depende do foco: ou você deixa o inquérito andar como os outros, ou você acelera. Em um ou dois meses nós acabamos com o caso.

É desgastante emocionalmente. Não dá vontade nem de sair à noite ou no final de semana. A pessoa expõe aquilo que ela não queria falar… Aquilo te consome. Ele pegava crianças muito carentes de dinheiro ou afeto, e supria. Teve uma menina que ele abusou dos 11 aos 19 anos. A ficha das vítimas vai caindo aos poucos.

Essa menina assistiu uma palestra de violência doméstica, com 23 anos, e depois disso demorou mais seis meses para vir para a delegacia.

Júlia Dolce; Edição: Camila Rodrigues da Silva

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