“O feminismo é anticapitalista e busca a libertação de todas as pessoas”, afirma Amina Mama

26 de agosto, 2024 Portal Catarinas Por Paula Guimarães e Mariana Prandini Assis

Em entrevista, compartilha suas reflexões sobre os desafios e avanços do feminismo africano e as implicações do neocolonialismo para as mulheres.

A escritora, ativista e acadêmica nigeriana-britânica Amina Mama é uma das feministas mais influentes do continente africano, reconhecida por integrar rigor acadêmico com ativismo político. Sua obra seminal Beyond the Masks: Race, Gender and Subjectivity (“Além das Máscaras: Raça, Gênero e Subjetividade”, em tradução livre), publicada em 1995, marcou profundamente o debate sobre identidade e poder, redefinindo os estudos de gênero e raça e abrindo novos caminhos para o feminismo, tanto na África quanto globalmente.

Mama é uma crítica incisiva do feminismo branco, que ela aponta como enraizado no colonialismo, capitalismo e racismo, temas centrais em sua obra e em sua abordagem feminista. Formada em Psicologia pela Universidade de St. Andrews, com mestrado na London School of Economics e doutorado pelo Birkbeck College, sua carreira acadêmica começou com a comparação das experiências de mulheres na Grã-Bretanha e na Nigéria.

Sua trajetória a levou à África do Sul, onde dirigiu o Instituto Africano de Gênero na Universidade da Cidade do Cabo e fundou, em 2002, a revista Feminist Africa (África Feminista). Desde 2010, Mama leciona nos Estados Unidos, onde integra o Departamento de Estudos de Gênero, Sexualidade e das Mulheres, na Universidade da Califórnia, em Davis.

Reconhecida por sua crítica ao militarismo global e ao neocolonialismo, e pela defesa de um feminismo anticolonial e anticapitalista, Amina Mama conversou com Mariana Prandini Assis, professora da UFG, e Paula Guimarães, do Portal Catarinas, durante o 13º Fazendo Gênero.

Nesse diálogo, ela compartilhou suas reflexões sobre os desafios e avanços do feminismo africano, as implicações do neocolonialismo para as mulheres e a importância de conectar academia e movimentos sociais. Ela também refletiu sobre como suas experiências pessoais e profissionais moldaram sua visão crítica e suas esperanças para o futuro do feminismo no Sul Global.

Amina Mama, é um prazer tê-la conosco. Conte-nos um pouco sobre você, sua trajetória e como sua vida pessoal se conecta com a acadêmica.

É um prazer conhecê-las. Na verdade, tenho ascendência brasileira. Minha mãe nasceu no Brasil há muitos anos, mas voltou para a Europa quando era criança. Eu não conhecia o Brasil até muito recentemente.

Cresci no Norte da Nigéria, numa cidade chamada Kaduna. Sou de ascendência mista. Meu pai foi um dos primeiros africanos a se tornar médico e abriu uma pequena clínica na capital administrativa onde morávamos.

Cresci numa família mestiça no Norte da Nigéria, que, como devem saber, é uma área fortemente islâmica. Minha família era de uma minoria étnica e, sendo cristã, também era uma minoria religiosa, por isso, crescemos muito autossuficientes.

Durante minha infância, a Nigéria estava predominantemente sob regime militar. Desde cedo, desenvolvi uma aversão ao totalitarismo, aos homens uniformizados, à injustiça, e testemunhei muita desigualdade.

Acho que, quando eu tinha nove anos, a guerra civil começou. Eu fui testemunha ocular, quando criança, de uma guerra civil, algo sobre o qual nossa escritora, Chimamanda Adichie, escreve. Embora eu não tenha percebido na época, essas experiências influenciaram minha psicologia, minha consciência e meu crescimento.

Quando a guerra chegou, fui mandada para um internato na Europa. Cresci entre minha casa no norte da Nigéria, onde era relativamente privilegiada, e os internatos ingleses para meninas, onde não havia outras crianças negras ou pardas. Isso me forçou a tomar consciência da raça de uma forma que eu não conhecia na Nigéria.

Por ser um país africano, todas as pessoas eram africanas e havia muita diversidade. Assim, me acostumei a mudar, a ter mais de uma identidade, e isso norteou minha escolha de ser psicóloga. Decidi não seguir medicina e me tornei uma cientista social, começando pela psicologia.

Você se identifica como uma acadêmica ativista. O que significa ser uma acadêmica ativista? Como o ativismo informa suas pesquisas, e qual o papel da academia no ativismo?

A razão pela qual me refiro a mim mesma como uma acadêmica ativista é porque fui uma ativista antes de me tornar uma acadêmica. Não escolhi essa direção; foi o caminho em que, por acaso, me encontrei ao voltar para a universidade para estudar.

Em parte, porque, especialmente para muitas mulheres africanas, a educação é realmente uma forma de perseguir sua liberdade tanto individual quanto coletiva. Eu estava evitando casar cedo, por isso fiz outra graduação. E depois, ainda evitando o casamento, fiz doutorado.

O doutorado não foi porque eu queria ser acadêmica, mas porque estava frustrada com o que havia aprendido na minha formação como psicóloga. Era uma psicologia colonial que patologizava pessoas não brancas e pessoas de múltiplas identidades. Isso me fez querer escrever um livro sobre a consciência política e pessoal das mulheres negras.

Escrevi uma tese analisando como raça e gênero constroem nossas identidades de maneira diferente da norma, que é a ideia branca, masculina e patriarcal de uma identidade única que se torna fixa em uma certa idade. Na verdade, crescemos em sociedades muito mais complexas, nas quais nossas identidades estão entrelaçadas – seja de classe, raça, gênero, religião ou etnia.

Na maior parte das localidades, há uma multiplicidade, uma fluidez e uma pluralidade na produção da identidade. Eu sabia disso intuitivamente e também sabia que não era louca; havia algo errado com a disciplina de psicologia. Então, escrevi uma tese criticando a cumplicidade da minha disciplina na produção de noções patológicas sobre pessoas negras e mulheres, inferiorizando as mulheres.

Isso, é claro, significou que eu nunca conseguiria um emprego na minha disciplina, por isso, nunca trabalhei como psicóloga. Também nunca consegui um emprego na Grã-Bretanha. Na década de 1980, as universidades não empregavam pessoas negras, por isso, meu primeiro emprego foi fazendo ativismo e pesquisa comunitária.

Os anos 1980 foram uma época de muita agitação urbana nas cidades britânicas, chamadas de “revoltas negras”. Eu morava em Brixton e entrei para um grupo feminista negro marxista-leninista quando tinha 20 e poucos anos. Devo muito da minha perspectiva política a essa experiência inicial de racismo e violência policial nas comunidades e à necessidade de desafiar esse estado de coisas.

É por isso que digo que, naquela época, ainda não era uma acadêmica; era mais uma ativista comunitária e fiz pesquisas comunitárias sobre política habitacional e violência contra mulheres negras. Escrevi o primeiro livro sobre violência contra mulheres negras da Grã-Bretanha. E ainda não estava pronta para voltar para casa.

O primeiro emprego acadêmico que consegui foi na Holanda. Fui contratada como professora no Instituto de Estudos Sociais em Den Haag, Haia.

E como hoje o seu trabalho ainda está ligado ao ativismo?

Na Holanda, eu lecionava em um programa de mestrado em estudos das mulheres e desenvolvimento. Nesse ponto, deixei de ser uma psicóloga com formação convencional para me tornar uma pesquisadora em desenvolvimento internacional e estudos de gênero.

Decidi seguir os estudos de gênero porque me permitiam transitar entre diferentes disciplinas. Nos estudos de gênero, você pode vir de qualquer área e recorrer à história, à política, aos estudos culturais ou à antropologia. Como cientista social africana, nenhuma das disciplinas tradicionais realmente funcionou para abrir nossos olhos à realidade e estudar nossas sociedades.

Assim, me vi viajando por diferentes disciplinas e me tornei uma estudiosa transdisciplinar, sempre tentando encontrar as ferramentas necessárias, o que significava ir além de uma disciplina para outra.

Quando voltei para a Nigéria, os militares haviam imposto uma moratória, e não havia empregos acadêmicos. Então, trabalhei como freelancer, uma mistura de jornalismo e pesquisa, e comecei a colaborar com outras pessoas para organizar centros e grupos independentes, ambos conectados a redes de mulheres para desenvolver estudos de gênero.

Embora não tivesse um emprego formal, consegui recursos para formar uma rede nacional de todas as feministas ou potenciais feministas, reunindo as mulheres que trabalhavam com ensino de gênero e estudos sobre mulheres nas universidades nigerianas. Fiquei lá por dez anos e tive meus dois filhos durante esse período.

Meu primeiro trabalho acadêmico de verdade foi na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Logo após o fim do apartheid, fui recrutada para criar currículos para africanos nas universidades sul-africanas, onde fiquei por quase dez anos.

E agora você vem ao Brasil para participar do Fazendo Gênero. Esta é a 13ª edição de um evento que tem conectado pesquisadoras e ativistas do Sul Global para pensar sobre questões urgentes em meio à crise do presente. Você poderia nos contar como tem sido sua experiência aqui e como avalia eventos como este para a mobilização feminista transcontinental?

Fiquei muito entusiasmada com o convite quando soube que o tema era uma ponte entre a academia, a sociedade civil e os movimentos sociais, porque é nisso que sempre acreditei. Não acredito na academia como uma torre de marfim; acho que a universidade deve ser universal e acessível a todos. Se é chamada de universidade, por que transformá-la em uma torre de marfim, separada das vidas, necessidades e desejos das pessoas? Ela deve ser a instituição que representa o epítome das esperanças e aspirações das pessoas em termos de educação e transformação social.

Para mim, e para quem compartilha dessa filosofia, é muito importante vincular intelectuais e pensadores aos movimentos sociais e entender que os movimentos também produzem conhecimento. Na sua forma convencional, a academia apenas se apropria, colhe e extrai conhecimento das comunidades, e sou uma grande crítica desse modo extrativista acadêmico. Acredito que as pessoas que têm o privilégio de serem intelectuais profissionais devem prestar um serviço aos nossos movimentos sociais e comunidades.

O Fazendo Gênero foi um lugar perfeito para eu conhecer o Brasil. Além do meu interesse pessoal pelo país onde minha mãe nasceu, que é quase anedótico, o Brasil tem várias características que o tornam de grande interesse para os países africanos. É um país enorme, com uma grande diversidade e múltiplas línguas, embora o português seja dominante. É uma potência regional, como a Nigéria, e que também enfrentou décadas de ditadura. Vejo que podemos aprender muito umas com as outras.

Eu realmente vim para aprender mais sobre o Brasil, o feminismo brasileiro, e para fazer conexões que levarei para o Fórum de Futuros Feministas do Sul, onde estamos realizando uma série de projetos em todo o Sul global. Essa é uma plataforma que reúne feministas asiáticas, latino-americanas e africanas. Estamos trabalhando no desenvolvimento de um Manifesto Feminista do Sul e na criação de um Centro de Conhecimento dos Futuros Feministas do Sul, que será um grande repositório e arquivo acessível de conhecimentos feministas do Sul.

A importância disso é que o feminismo, hoje em dia, pode ser todo tipo de coisa.

Há muitas feministas liberais brancas, até mesmo Hillary Clinton se autodenomina feminista, o que é muito perturbador. Precisamos repolitizar o feminismo e entender o que queremos dizer quando nos identificamos como feministas, porque é algo muito diferente – profundamente anticolonial, anticapitalista e voltado para a libertação de todas as pessoas, começando pelas mulheres, por razões óbvias.

Também me identifico como uma pessoa de estudos feministas e de gênero, mas estou em uma Faculdade de Ciências Sociais, o que é muito bom. Sempre luto com a disciplinaridade e meus estudos estão na interseção entre direito e política, mas penso ser importante para nós, que estamos fazendo um trabalho feminista e interdisciplinar, voltar às disciplinas para desafiar esses limites. Como você lidou com isso? Você teria algum conselho para jovens acadêmicas que estão, por um lado, lutando contra a forma como as disciplinas nos disciplinam, mas, ao mesmo tempo, estão conscientes de que nossa atenção para gênero e feminismos pode indisciplinar as disciplinas?

Tenho sido uma grande defensora da criação de espaços específicos para o pensamento feminista por causa da hostilidade e resistência das disciplinas à análise crítica de gênero. Passei grande parte da minha carreira construindo espaços seguros para as mulheres, não apenas para estarem fisicamente seguras, ou seja, livres de assédio, mas para terem o apoio, o conforto e a confiança para se desenvolverem intelectualmente.

No entanto, depois de tantos anos, percebo as limitações de falarmos apenas entre nós e de construirmos apenas o nosso campo. Precisamos de um campo forte como uma incubadora, para nutrir e aumentar a confiança e o poder político e intelectual das mulheres pensadoras, o que seria muito difícil de outra forma dentro da academia patriarcal. Contudo, também temos a responsabilidade de voltar às disciplinas e desafiá-las. Vemos isso acontecendo, por exemplo, na transformação da economia pela economia feminista ou na existência de um grande campo chamado psicologia feminista, que é muito diferente da convencional.

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