Celebramos mulheres, mas não sua cor, por Winnie Bueno e Sthéfani Luane

04 de outubro, 2018

É urgente revelar o silêncio da mídia sobre a primeira eleição da história do Brasil que conta com duas candidatas negras à presidência

(CartaCapital, 04/10/2018 – acesse no site de origem)

No início de 2018, houve a celebração da vitória da primeira mulher negra vice-presidente na América Latina: Epsy Campbell Barr. Após este episódio, em agosto, um portal de notícia divulgou que “A América Latina poderá ter a primeira mulher negra presidenta do continente”, em referência à Piedad Córdoba Ruíz, que anunciou sua pré-candidatura ao Palácio Nariño, na Colômbia.

Mesmo com todas essas notícias celebrando as candidaturas de mulheres negras para os cargos de vice-presidência e presidência na América Latina, não houve o mesmo em relação às mulheres negras candidatas à presidência no Brasil, o que nos traz a questão: por que os meios de comunicação celebram as candidaturas de mulheres negras no cenário internacional, mas ignoram as candidaturas de mulheres negras no cenário nacional?

Para compreender esse fenômeno dois conceitos podem ser úteis: o de interseccionalidade e o de imagens controladoras.

Segundo Silma Bilge (2009), a interseccionalidade é uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades, através dos eixos de diferenciação social e a sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais. Kimberlé Crenshaw divide esse conceito em categorias, sendo que uma delas é a interseccionalidade política, que trata das políticas feministas e antirracistas que, ao não levar em consideração a raça e o gênero das mulheres não-brancas, têm como consequência a negação de uma dimensão da subordinação destas.

Já a socióloga Patricia Hill Collins desenvolveu o conceito de imagens controladoras, sendo que estas são a dimensão ideológica do racismo, utilizadas como forma de naturalizar e normatizar as relações de subordinação e dominação através do uso de estereótipos controladores dos corpos e do comportamento de grupos marginalizados. São frequentes na mídia, alteram-se conforme o momento histórico e a dinâmica das opressões, mas mantêm o objetivo central de tornar as mesmas algo natural.

Com base nestes dois conceitos, podemos ver, neste ano eleitoral, como a ausência da interseccionalidade política e a insistência das imagens controladoras impedem o desenvolvimento de discursos políticos que potencializem mulheres não-brancas.

O silenciamento a respeito da importância que as candidaturas de Vera Lúcia e Marina Silva estão vivendo agora falam bastante a respeito da construção social em nosso país. A branquitude detém o poder de nomear o que é e o que não é um problema social e ao silenciar os significados dessas candidaturas, a mídia coloca as contestações de mulheres negras em um limbo político.

Ao fazer a crítica à invisibilidade das candidaturas das mulheres negras presidenciáveis, uma das justificativas da esquerda é o perigo de eleger uma mulher negra de direita – o que poderia ser mais prejudicial do que eleger um homem branco de esquerda. E nesse sentido, também se utiliza uma imagem controladora, designando às mulheres negras ingenuidade, como se essas não fossem capazes de gestar com autonomia seus projetos políticos.

Além disso, a esquerda ignora que se um dia uma mulher negra de direita se tornar presidente antes de uma mulher negra de esquerda, a responsabilidade é dos partidos de esquerda, uma vez que raramente fortalecem institucionalmente os projetos políticos de mulheres negras. As pautas dessas mulheres nunca estão colocadas enquanto estratégia política nos partidos.

A cooptação de quadros, raramente preocupa-se com aumentar a participação de mulheres negras enquanto figuras públicas viáveis. A própria Epsy, na Costa Rica, fez campanha para ser a escolha do partido para a presidência, mas desistiu da corrida a favor de Luis Solís, demonstrando que não é só no Brasil que é difícil ser escolhida à tais cargos.

Mesmo considerando que as mulheres negras representam 25,3% da população brasileira e que tenha uma representatividade baixa em todos âmbitos, o fato de haver duas candidatas negras ao executivo nacional foi noticiado por quase nenhuma mídia. Até o início do mês de setembro, por exemplo, somente um portal de notícias havia realizado uma matéria centralizando essa questão.

Em 2010 Marina Silva disse que queria ser “a primeira mulher negra, de origem pobre, presidente da República Federativa do Brasil”, o que foi ignorado, uma vez que Marina não correspondia às expectativas dos movimentos sociais.

Hoje temos duas mulheres negras disputando a presidência – a própria Marina, negra, nortista, 60 anos, e que caminha para sua terceira eleição, concorre à presidência pela Rede; e Vera, negra, nordestina, 51 anos, e que concorre à presidência pela primeira vez pelo PSTU. Em que pese a diferença dos programas de Marina e Vera, a trajetória política e pessoal de ambas é no mínimo notória, uma vez que não é fácil vencer as barreiras raciais e ser indicada ao cargo máximo da República.

Votar em candidatas de acordo suas posições políticas pode ser importante para manter coerência. Em relação à Epsy e Piedad, ambas são mulheres negras que possuem propostas políticas voltadas, por exemplo, à população LGBT+, o que as fez serem reconhecidas pela esquerda no âmbito internacional. Porém, mesmo Vera, que têm um programa bastante correspondente às pautas valorizadas pela esquerda, é ignorada.

Poderia se dizer que Vera Lúcia é candidata por um partido minoritário. Mas existem outros candidatos, também em partidos pequenos, que são considerados como possibilidade política. Vera não é nem lembrada. É mais fácil ver pessoas de esquerda falando a respeito da candidatura de Kátia Abreu, a vice ruralista de Ciro Gomes, do que ler qualquer análise sobre a candidatura de Vera.

Por fim, cabe dizer que desde a Proclamação da República o Brasil teve um único presidente negro e uma única mulher branca. Nenhuma mulher negra brasileira foi eleita presidenta do Brasil até então.

O silenciamento e a supressão das ideias e dos projetos de mulheres negras, engendrado para a permanência do status de subordinação não permite que as mesmas sejam vistas como lideranças políticas na esfera pública. Mesmo quando estão postulando o cargo máximo do executivo brasileiro, mulheres negras são interpeladas pelo racismo sexista que omite a trajetória e as experiências dessas mulheres.

Estamos ainda muito longe de eleger uma mulher negra à presidência desse país, não por falta de empenho das mulheres negras, mas em razão das barreiras históricas constituídas pelas imagens controladoras e pela ausência de interseccionalidade política.

Winnie Bueno é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Sthéfani Luane é graduanda em Direito pela Universidade de São Paulo. A coluna cede espaço para que elas falem sobre candidaturas de mulheres negras nestas eleições

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas