(Agência Patrícia Galvão) As denúncias envolvendo a Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) trouxeram à tona questões essenciais para que um número bem mais amplo de mulheres tenham garantido seu direito a uma vida sem violência: a necessidade urgente de trabalhar o tema dos direitos humanos na educação para desconstruir a discriminação de gênero, por um lado; e o peso da omissão institucional na naturalização e reprodução da violência, por outro.
Direitos humanos como pauta dos cursos universitários
As denúncias sobre repetidos abusos sexuais e discriminações em um dos cursos superiores mais concorridos do País demonstram que, conforme apontado por especialistas consultados pela Agência Patrícia Galvão, a violência contra as mulheres independe de classe social ou formação educacional. “Fica patente como é necessário criar uma espécie de pauta dos direitos humanos em vários cursos, promovendo o enfrentamento à homofobia, ao racismo e ao machismo. As minorias são muito fragilizadas e isso é assustador”, aponta a pesquisadora e professora do Departamento de Antropologia Social da USP Heloísa Buarque de Almeida, que coordena o programa USP Diversidade, ligado ao Núcleo de Direitos Humanos da Reitoria.
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Nesse contexto, aponta a pesquisadora, é necessário combater a cultura machista disseminada nas universidades nos cursos existentes nas diferentes áreas. “É preciso ensinar para os rapazes a cultura do consentimento. O cara tem que entender que se a mulher está bêbada, desacordada, ele não pode abusar dela. Sexo sem consentimento é estupro e é muito difícil falar sobre isso no Brasil, porque a ideia do ‘quem mandou beber até cair, a culpa é dela’, infelizmente, ainda é muito difundida”, destaca a professora.
Viés moralista estimula a culpabilização da vítima
De acordo com a também antropóloga e pesquisadora da USP Beatriz Accioly, a violência de gênero está justamente associada a convenções do que se espera de homens e mulheres na sociedade. “Quando falamos de gênero, que são essas construções sociais acerca do que é masculino e do que é feminino, estamos olhando para certas características que, associadas ao masculino e ao feminino, favorecem violências”, explica.
Nos casos da violência sexual, é bastante comum, por exemplo, que se menospreze a gravidade do crime culpando a própria vítima pela violência sofrida. “A questão de gênero na violência sexual aparece muito associada ao que se espera de uma mulher ‘recatada’. Então, se a mulher não faz aquilo que se espera dela do ponto de vista de uma moral sexual, ela está em risco e talvez acabe sendo culpada pela própria violência que sofreu”, aponta.
As especialistas também apontam que os estereótipos que reforçam práticas de violência precisam ser desconstruídos, como a hipersexualização da mulher. “Segundo esse estereótipo da hipersexualização é como se uma mulher que já fez sexo uma vez fosse sempre estar sempre disposta, a fim de sexo”, exemplifica Heloísa Buarque de Almeida.
Muitas vezes, porém, as instituições e serviços do Estado, por ação ou omissão, reforçam esses estereótipos ao invés de coibi-los. Casos como da FMUSP são recorrentes tanto no País quanto fora dele. Nos Estados Unidos o Departamento de Educação investiga 86 instituições de ensino superior por supostamente ignorarem casos de violência sexual em suas dependências. “Estes casos precisam ser denunciados para mostrar que isso não acontece só nas classes populares e nem com quem tem pouca educação, porque está acontecendo nas universidades”, frisa a pesquisadora.
Rompendo a barreira da invisibilidade
Para mudar esse cenário, a médica e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Ana Flávia D’Oliveira, aponta como primeiro desafio tirar os casos da invisibilidade e conscientizar sobre as desigualdades existentes entre homens e mulheres, revertendo discriminações baseadas no gênero que se articulam com outros marcadores sociais, como raça e classe social, gerando violações à integridade física, moral ou psicológica da mulher.
“Precisamos em primeiro lugar ver e fazer ver os casos de violência, acolhendo as vítimas, combatendo a sua culpabilização e responsabilizando os agressores. É necessário também campanhas de educação e reflexão para que a sexualidade de homens e mulheres possa ser reconhecida e valorada como uma dimensão importante e positiva da vida e possa ser exercida de forma livre e responsável em relação a si mesma/o e aos outros/as”.
Após meses de insistência e de repetir inúmeras vezes os relatos da violência sofrida, as vítimas e os coletivos feministas na FMUSP começam a receber apoio e respostas: os casos de abuso sexual e violações de direitos humanos serão investigados por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), proposta pelo deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp, que promoveu as audiências públicas sobre as denúncias nas últimas duas semanas.
Recentemente, o Anuário da Segurança Pública apontou, entretanto, que a estimativa é que apenas 35% dos estupros são denunciados. Na percepção da antropóloga Heloísa Buarque esse número pode ser ainda menor uma vez que, dada a naturalização da violência de gênero, por vezes as mulheres sequer reconhecem que foram vítimas de uma violência e internalizam discriminações, como a de serem responsabilizadas pelo estupro que sofreram.
Para incentivar as denúncias, no caso da USP a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão fará um levantamento online para mapear os casos de homofobia, racismo e machismo – incluindo violência sexual – na instituição.
“As universidades estão tendo que inventar políticas para uma coisa que elas não imaginavam que acontecia. Muitas estão fazendo manuais e cartilhas sobre trote, que é um momento de violência não só contra as mulheres, tentando criar políticas que não existiam. Neste momento não temos nenhum bom sistema – nem de acolher as denúncias ou as vítimas, nem de pensar políticas. Estamos tentando criar isso agora”, reforça Heloísa.
Investir no enfrentamento
Outra medida recomendada, no caso da Faculdade de Medicina, é a criação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos da FMUSP, que deve prestar atenção integral às vítimas, com acolhimento e assistência psicossocial e jurídica, e conter mecanismos que possibilitem processos administrativos e sindicâncias transparentes, justas e eficazes, com a responsabilização dos agressores de acordo com as normas da Universidade.
O funcionamento do Centro dependerá da aprovação da Congregação da FMUSP e, depois, de sua organização e regulamentação, que poderão ocorrer em breve, conforme explica a professora Ana Flávia. “Temos grande esperança de que o Centro venha a ser um mecanismo inovador e pioneiro na universidade brasileira, fazendo jus à vocação da FMUSP, e estamos à disposição para apoiar no que for possível”.
A expectativa é que um espaço deste tipo atue também na prevenção de casos semelhantes por meio da conscientização de professores, alunos e funcionários nos temas de respeito aos direitos humanos e no combate ao racismo, machismo e homofobia através de campanhas, seminários e outros eventos e fóruns de discussão.
“Este processo educativo visa prevenir a ocorrência de novos casos e formar profissionais de saúde que promovam os direitos humanos como uma questão de saúde, superando a dicotomia entre competência técnica e postura ética e compreendendo a profunda articulação entre estas duas dimensões da atuação profissional”, defende a médica.
O Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP solidarizou-se com as vítimas e defendeu uma série de intervenções para reverter o cenário existente hoje. Em nota, os profissionais manifestaram “indignação diante dos casos de violação de direitos, discriminação e violências ocorridos na Faculdade de Medicina da USP. Também estamos consternados com o fato de não termos estado cientes de toda essa situação e, portanto, falhado em proteger os mais vulneráveis e mesmo já estarmos atuando para prevenir tais situações”.
O Departamento também apontou que “são urgentes e necessárias mudanças que sintonizem a Universidade com valores sociais de respeito às diferenças e boa convivência na pluralidade de indivíduos, com consequente formação de médicos adequados ao que a sociedade brasileira espera, profissionais capazes de unir a competência técnica com a ética e o respeito aos direitos humanos”.
Contatos
Ana Flávia D’Oliveira – Doutora, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
(11) 3061-7085 ou 3061-7285 – [email protected]/ [email protected]
Beatriz Accioly – antropóloga, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP
[email protected]
Heloísa Buarque de Almeida – pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP e coordenadora do programa USP Diversidade
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